PEDALAR É PRECISO!

terça-feira, 30 de junho de 2009

BEM-AVENTURADOS



Portugal é um país pacífico, parece. Tem uma longa tradição de aguenta aí. Aguenta até quando?

Segundo um estudo feito pelo Centro de Estudos Territoriais (CET), associado ao ISCTE -Instituto Universitário de Lisboa, os portugueses estão cada vez mais pobres e, como se isso não bastasse, estão também mais desmobilizados e desinteressados da política. Não se queixam. Em conclusão, segundo o estudo, estão mais felizes. Voltámos aos tempos do Dr. Salazar?

Os portugueses estão mais pobres porque afinal já não são apenas 18%, nem 20%, upa, upa! 33% da população, portanto um terço de portugueses juntamente com os imigrantes, vive num “contexto de precariedade” e luta pela “sua sobrevivência”, estou a citar uma das coordenadoras do estudo e mais de metade (57%) tem um orçamento familiar abaixo dos 900 euros.

Mas tudo isto não assusta os portugueses, porque pelos vistos vivem felizes.

No tempo do Dr. Salazar também era assim, a pobreza era uma virtude. Pobres mas honrados, pobres e conformados sem ambições, contentavam-se com pouco, eram felizes. Era assim, parece que era assim. Tinham umas hortas, auto-cultivo e assim contrariavam a fome. Parece que é isso que também está a dar agora nalgumas zonas mais pobres do interior. E provavelmente também nas chamadas hortas urbanas…

No dia desta notícia, duas outras que têm a ver com dinheiro e com honradez, fazem um contraponto interessante.

O sr. Madoff, ex-presidente do Nasdaq de New York e grande financeiro que se superou a si próprio nesses domínios ao conseguir a proeza de realizar a maior falcatrua, vigarice e ladroagem da história, apanhou 150 anos de prisão. Pena simbólica, está-se mesmo a ver, vai viver aconchegado num sítio qualquer e depois deixa-se de falar do assunto, nestas coisas a solidariedade entre ricos e poderosos fala sempre mais alto.

Será que os nossos senhores banqueiros que também se têm ilustrado na arte de bem enganar muita gente e encher os bolsos seguirão o destino do sr. Madoff? À escala portuguesa, não se comparam com Wall Street, são apenas mais uns banqueiros, mas, mesmo assim, citando o Vital Moreira, ilustre cabeça de lista do PS, que grande ladroagem!

Haverá alguém que acredite que estes ilustres homens de finanças da nossa praça receberão nem que seja uma pequena advertência simbólica?

Por enquanto, as perspectivas de que isso venha a acontecer são muito ténues e longínquas. Só um é que está por detrás das grades. Os outros continuam a divertir-se à grande, alguns com reformas de milhões, aviões particulares e exércitos de seguranças. Serão felizes?

O exemplo português trazido pelo estudo do CET confirma que não. Porque o velho ditado continua a ter razão: riqueza não dá felicidade, pobreza sim.


Pobres mas felizes, será o nosso país um sítio de pessoas maioritariamente bem-aventuradas?

Se assim fosse, isso seria um mal menor, porque bem vistas as coisas, bem-aventurados são os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus!

Porque, além de estar na Bíblia e de ser uma frase atribuída a Jesus Cristo, essa bem-aventurança justifica as famosas leis do mercado e em particular a liberdade que têm os mais fortes e aguerridos em explorarem em seu proveito os mais pacíficos e desmobilizados.

Desmobilizados têm estado, desmobilizados continuarão. Até quando?

terça-feira, 23 de junho de 2009

HUMILDADES


Em alguns países europeus, o debate político tem vindo a incidir cada vez mais sobre as lições que é preciso tirar da crise, com vista a melhorar as sociedades do futuro. O facto de o pós-crise estar na ordem do dia nesses países significa que existe uma enorme pressão social que obriga os governos, na sua maioria de direita, a terem que equacionar planos e orientações que teoricamente poderiam e deveriam ser protagonizados por governos de esquerda. Grande novidade, portanto.

Em Portugal pouco se fala do pós-crise. Aqui, a agenda política continua a ser pontuada pelas mesmas velhas questões de há vários anos, tgv, aeroporto, auto-estradas, avaliação dos professores, educação, segurança, justiça. Velhas questões que muito provavelmente continuarão a ser discutidas durante a próxima década.

As únicas mudanças no nosso debate político, se a isso se pode chamar debate, poderão, como de costume, vir a ser novas tricas e comérages politiqueiras à volta de novos personagens que continuamente vão emergindo na cena pública até ao seu rápido esquecimento.

A última comérage política, que durante uma semana fez salivar a gente do milieu, comentadores, repórteres, políticos, foi o coelho de nome humildade, tirado da cartola pelo ainda primeiro-ministro Sócrates.

Infelizmente, a humildade inerente à dúvida do Sócrates ateniense não tem a ver com esse passe de mágica, porque se assim fosse, poderia ainda haver algumas razões de esperança na política.

Em tempos, o primeiro-ministro Cavaco Silva foi exemplo assumido de denegação da dúvida ateniense e por vias do facto um bom exemplo da falta de humildade dos políticos à portuguesa: “raramente tenho dúvidas e nunca me engano”, creio que foram estas as suas palavras no auge do seu poder. Apesar de esmagador, tal pensamento não ultrapassa, no entanto, o alcance do “sou um animal feroz” do ainda primeiro-ministro Sócrates. Mas ambos estão em perfeita sintonia.

A verdade nua e crua é que o combate político em Portugal, que me lembre, não tem tido por costume ser principalmente um combate em nome de ideias. Porque somos um país marialva, quem gritar mais alto, quem parecer mais machão, normalmente deve ganhar. É um princípio que inspira muita gente que tem poder. Não vou dar exemplos, teria que ser uma lista muito longa, de facto o Sócrates de S. Bento não está sozinho.

Mas interessa reflectir sobre as consequências da falta de humildade dos políticos à portuguesa.

Ser humilde em política significaria em primeiro lugar saber ouvir, em vez de se assobiar para o lado sempre que se colocam problemas. Exemplo óbvio: soube a Ministra da Educação ouvir os professores que manifestaram na avenida da Liberdade?

Pergunta óbvia: como é que a socióloga Maria de Lourdes Rodrigues que, enquanto Ministra da Educação, aprovou nos primeiros tempos do seu mandato algumas medidas corajosas e inteligentes, se lançou depois numa guerra de trincheiras contra os professores, invocando nessa guerra argumentos puramente administrativos e burocráticos, os quais, não sendo nem políticos nem sociológicos, lhe deveriam ser estranhos?

Nova pergunta óbvia: será que a política e o poder corrompem, transtornam o espírito de quem os exerce?

Ou será que o simples exercício da política não transtorna apenas quem está no poder?

Infelizmente, existem poucos políticos verdadeiramente livres, penso que a maioria dos nossos políticos limitam-se a obedecer à lógica e às ordens dos seus partidos, o interesse público é apenas um detalhe no meio das suas divagações de circunstância. São políticos assalariados e, por isso, para merecerem o emprego, têm que defender acima de tudo a linha e os interesses do partido. Alguma vez viram um político de esquerda concordar em público com ideias ou propostas de um político de direita ou vice-versa?

Ser humilde em política deveria, pois, também significar que os políticos se ouvem atentamente e com respeito uns aos outros. Por que razão não conseguem os que estão no poder e os que estão na oposição debater entre si de maneira frontal, inteligente e civilizada acerca das melhores soluções para sair da actual crise e preservar um futuro melhor? Será que isso iria prejudicar o país?




Humildade significaria também que os políticos sabem respeitar os cidadãos que os elegeram e que, sendo o seu poder transitório, um poder delegado pelo povo, não se podem arrogar em detentores únicos desse poder.

Na realidade, é o marialvismo da cultura política dominante que explica o corte absoluto que separa os políticos dos cidadãos e os cidadãos da política. Temos, assim, uma sociedade amorfa, uma sociedade em vias de asfixia, onde, por exemplo, os jovens têm cada vez menos oportunidades de libertar a sua criatividade em projectos de futuro. E assim, vamos perdendo a nossa identidade e vão aumentando as incertezas e os perigos.


O actual contexto de crise deveria estimular a procura de novas soluções, soluções mesmo novas, deveria promover a iniciativa e a criatividade dos cidadãos. Infelizmente, entre nós a política tem servido principalmente para fazer favores aos poderosos e aos grandes grupos económicos e financeiros.

Em defesa do interesse público, mandaria a humildade política, que, em vez de se distribuírem milhares de milhões por esses grupos, se utilizassem os dinheiros e a capacidade do Estado para promover a actividade de grupos de cidadãos trabalhadores que apresentem projectos viáveis e socialmente úteis de empresas ou de cooperativas. Projectos que, por exemplo, se substituíssem a empresas falidas ou deslocalizadas.

Mandaria a humildade que os políticos soubessem partilhar os seus poderes, abrindo espaço à intervenção da sociedade na gestão do interesse público e promovendo e defendendo os direitos, a autonomia e a iniciativa individuais.
Mandaria a humildade que os governos, os legisladores, os juízes e as polícias fossem capazes e estivessem interessados em defender os mais vulneráveis contra as violências, contra a sobrexploração, contra as injustiças.
Mandaria a humildade política que os políticos de hoje estivessem honestamente interessados em contribuir para que se construa uma verdadeira democracia e uma sociedade justa e sem descriminações.
O problema, a dificuldade de tudo isto é que essa coisa da humildade política é apenas uma fantasia de verão, quando acabarem as eleições não se fala mais nisso.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

OS ROMENOS



Os europeus têm dificuldades óbvias - serão só dificuldades? - em lidar com os romenos. Será culpa dos romenos?

Apesar de pertencerem à Comunidade Europeia, os romenos são considerados como párias perigosos, são maltratados e perseguidos, particularmente em Itália, onde o condottieri Berlusconi acirra os baixos instintos contra os imigrantes e principalmente, vá-se lá saber porquê, contra os romenos.

Em matéria de xenofobia, de racismo e de violência cega nunca sabemos o que é que nos pode acontecer. Nunca poderei esquecer o que sucedeu há já alguns anos com dois portugueses que caminhavam junto ao Sena em Paris, creio que era perto da ponte de Tolbiac. Quando um grupo de arruaceiros franceses racistas os começou a perseguir, provavelmente por julgarem que eram dois indefesos norte-africanos, os desgraçados portugueses em pânico atiraram-se ao rio. Não escaparam. Deu notícia de jornal mas ficou por aí.


Em Belfast, grupos de racistas, aparentemente jovens, da Irlanda do Norte têm-se divertido nos últimos dias a atacar trabalhadores romenos e as suas famílias, incluindo crianças. Ainda não há muito tempo no mesmo sítio aconteceram idênticas cenas de violência xenófoba contra portugueses.


A xenofobia e as violências contra imigrantes são o pão nosso de cada dia na Europa, em muitos países. Em França a pátria dos direitos humanos, por exemplo, alguém que abrigue ou ajude um imigrante clandestino pode ser perseguido pela justiça. C’est ça l’Europe, Monsieur Sarkozy?

Os europeus que hoje perseguem, exploram vergonhosamente e maltratam muitos imigrantes, provavelmente daqui a 30 anos os seus filhos vão ter que ir de chapéu na mão pedir aos jovens de outros continentes que venham para cá trabalhar.


Mas quando vejo na televisão os romenos que vão trabalhar para as vindimas no Douro ou quando me cruzo com eles a vender o Borda d’Água junto aos semáforos e a pedirem uma moeda batendo nos vidros fechados dos carros, constato que estou a ser demasiado optimista e que nunca será feita justiça aos descendentes nem dos romenos, nem dos africanos, nem dos ucranianos, nem dos portugueses que a imigração torna vítimas indefesas das piores tropelias racistas e xenófobas.

O que é que sabemos dos romenos?



Habitado pelos antigos dácios, o actual território da Roménia foi conquistado em 106 pelo imperador romano Trajano. Os dácios converteram-se então à força ao império romano, adoptaram a língua latina e tornaram-se romenos. Agora, como se sabe, são os bem amados de cidadãos romanos adeptos do sr. Berlusconi…


É uma longa história, a história romena, os episódios mais recentes são a fundação do Reino da Roménia em 1878, a anexação soviética no final da 2ª guerra e consequente ditadura de Ceausescu e o fim trágico deste psicopata e da sua mulher Elena.


A maior parte dos romenos vive na Roménia, mas muitos outros vivem em muitos países, na Europa ou na América. No total serão cerca de 24 milhões, uma parte dos quais são os chamados romenos étnicos, ou seja, gente que fala a língua romena mas que não tem a respectiva nacionalidade. E, assim, muitos são de facto apátridas sem protecção.



Grosso modo é isto que sei sobre os romenos. É um povo latino e, por isso, sinto naturalmente uma certa empatia com eles.


É também um povo com grandes tradições culturais e de artistas notáveis e a minha empatia cresce.



Penso no Mircea Eliade, filósofo, historiador, antropólogo, cidadão do mundo que a certa altura viveu em Portugal, espírito inquieto, genial.

Penso na pequena Nadia Comaneci genial ginasta.


Penso principalmente na música e nos grandes intérpretes romenos, George Enescu, o grande compositor e violinista, e nos grandes pianistas Clara Haskil, Dinu Lipatti e Radu Lupu.




Dinu Lipatti era neto de George Enesco, teve uma vida trágica e breve. Morreu em Genebra de leucemia aos 33 anos, tempo mesmo assim suficiente para ser considerado por muita gente que percebe do assunto como o maior pianista do século XX.


Clara Haskil, judia romena foi considerada no seu tempo o grande intérprete de Mozart. Teve uma vida triste, doente, pobre, morreu em 1960 numa estúpida queda quando descia de um comboio na estação de Bruxelas, onde se devia apresentar no dia seguinte num concerto com o grande violinista Arthur Grumiaux.


Radu Lupu, grande intérprete especialmente conotado com as obras de Schubert, é hoje um dos mais iluminados pianistas deste mundo.


Romenos ilustres, imigrantes mas reconhecidos no seu génio. E os outros, romenos nómadas, romenos párias, romenos pobres, perseguidos, será culpa deles? Haverá justiça para gente perseguida na Irlanda do Norte, em Itália, em…?









sábado, 13 de junho de 2009

CRAZY HORSE



O meu avô é o responsável, levava-nos à matinée aos domingos, éramos três miúdos, formávamos um grupo inter-geracional que amava o cinema e os seus heróis. O meu preferido era o Errol Flynn, Robin Hood que roubava aos ricos para dar aos pobres e que lutava contra o xerife de Nottingham e contra o Claude Rains, usurpador do trono de Inglaterra. No fim, ele ganhava o torneio de tiro ao arco, safava-se da prisão, punha o Ricardo Coração de Leão no trono e casava com a bela Olívia de Havilland. Os pobres ficavam contentes.



Flynn fez nove filmes com a Olívia. Um deles marcou-me muito porque me fez chorar quando, no fim, aparece o fantasma do General Custer à sua mulher. Morreram todos calçados, de 1941, é um filme de Raoul Walsh que nunca mais voltei a ver. Levou tempo para perceber o seu verdadeiro significado, para perceber que tudo aquilo era uma grande falcatrua, a história estava toda aldrabada.


A aldrabice sobre os índios maus da fita já vinha de trás, mas o filme do Walsh teve particular importância nessa mistificação.


Não foi por isso que deixei de gostar do Flynn, mas a imagem mais forte que recordo do filme sobre o herói americano que morreu on his boots é a do Anthony Quinn na pele do Crazy Horse, chefe dos Oglala Lakota, quando no fim da batalha entre gringos e índios em Little Big Horne em 1876, com o Custer vencido, ele se debruça do cavalo para apanhar o estandarte do 7º de Cavalaria.


Crazy Horse é provavelmente o mais impressionante herói da enorme tragédia dos nativos da América metodicamente exterminados pelos colonizadores europeus. Dez anos antes de ter acabado com o Custer, com 26 anos e apenas com outros seis guerreiros, ele tinha derrotado no Wyoming o capitão William Fetterman que comandava 80 militares de infantaria e de cavalaria. Diz-se que foi a pior derrota do exército americano nas grandes planícies.

Mas o Crazy Horse era um homem dado a visões e a espiritualidades panteístas, queria viver em paz. Mas não teve sorte, a sua vida extinguiu-se rapidamente em 1877. Em 8 de Janeiro ganhou mais uma grande batalha no Montana que será a última. Em 5 de Maio, vendo o seu povo a morrer de frio e de fome, rendeu-se ao exército em Camp Robinson no Nebraska. Em 5 de Setembro desse fatídico ano, a oportuna baioneta dum soldado americano acaba com a sua vida. Tinha apenas 37 anos, era apenas um índio e por isso longe de poder ser um herói digno de Hollyood.


Na era do Vietnam, quando a contestação ao império americano alastrava, Soldier Blue de Ralph Nelson trouxe pela primeira vez uma visão diferente sobre os índios americanos. Soldier Blue (1970), protagonizado por Candice Bergen e por Peter Strauss, conta-nos a história do massacre de 700 índios que viviam na aldeia cheyenne de Sand Creek e dos quais mais de metade eram mulheres e crianças. Massacre de índios indefesos perpetrado em Novembro de 1864 por 900 voluntários da cavalaria do Colorado. Massacre que poderá ter sido “o crime mais ignóbil e mais injusto dos anais da América”.


Tristes rankings estes.


Terá sido pior que Wounded Knee onde, em Dezembro de 1890, 500 soldados americanos exterminaram, pelo menos, 300 homens, mulheres e crianças da tribo dos Lakota Sioux, incluindo o seu chefe Big Foot (agonizando na imagem abaixo)?




Terá sido pior do que todos os extermínios de que têm sido vítimas os índios sul-americanos? Extermínios muitos deles friamente planeados e executados como aquele de que nos fala o filme boliviano Sangre de cóndor de Jorge Sanjinés (1969)?
É um outro tipo de massacre, menos espectacular, mas porventura mais eficiente.




No planalto boliviano, os camponeses estão muito preocupados porque nascem cada vez menos crianças. Aos poucos vão descobrindo a verdade: são os médicos americanos dum tal Cuerpo de Progreso que, em nome da acção médica humanitária, esterilizam as mulheres sem elas saberem.

Violências como as que aconteceram na semana passada em Bagua, no Perú, e em relação às quais ainda estão por apurar exactamente o número de vítimas e as circunstâncias?

Felizmente, os índios vão-se levantando, vão lutando, elegeram mesmo um presidente índio na Bolívia e agora no Perú a coisa parece estar preta para o presidente Garcia e o seu Governo.

Correspondendo ao apelo de organizações indígenas, de sindicatos e de movimentos dos direitos humanos, em Lima, e em muitas outras cidades do Perú, milhares de pessoas manifestaram-se na 5ª feira, estão em greve e bloqueiam estradas. Tudo isto em solidariedade com os índios envolvidos nos confrontos de Bagua e contra os projectos do Governo que pretende privatizar territórios da Amazónia que legalmente pertencem aos índios.

Pode ser que a velha história dos índios condenados a ser eternas vítimas esteja em vias de acabar. Quem sabe?

terça-feira, 9 de junho de 2009

LES VERTS


Dos aspectos mais interessantes da ressaca das eleições europeias alguns estarão à vista outros não.

Está à vista que Manuela F. Leite mereceu o seu momento de glória, foi uma espécie de justiça poética para quem se manteve sempre firme nas suas convicções contra a imprensa bem pensante e os seus “amigos” de partido conspiradores. Ela mereceu esse momento e poder dizer, para toda a gente ouvir, que ganhou. Ganhou por pouco mas ganhou.

Aliás, o CDS também resistiu bem, porque têm feito um bom trabalho no Parlamento, uma direita que se tem modernizado, uma nova geração com futuro que se afirma, só os media é que não têm percebido isso.

Sócrates? Sócrates perdeu, de que é que ele estava à espera, tanta arrogância, tanta falta de seriedade e de visão política, com aquela colecção inacreditável de ministros, alguns freaks incompetentes, obstinados e inúteis. Agravante, toda esta gente obedientemente e entusiasticamente apoiada por um grupo, um partido de acólitos e de yes men tocando o tambor marchando – alegremente? - em direcção ao abismo. De que é que estavam à espera? O que é que vão esperar para Setembro?

Pergunta inevitável: ainda resta alguma coisa que tenha a ver com o chamado socialismo, em Portugal e na Europa? Só vejo destroços e isso é uma boa notícia. Sócrates, Martine Aubry, Gordon Brown passarão à história, pela porta pequena. Pensemos no futuro.

O Bloco de Esquerda tem muito trabalho pela frente, tem gente nova, ideias boas, mas que precisam de ser aprofundadas, precisam de se preparar seriamente para o poder. O BE já atingiu um grau notável de implantação e de adesão a nível nacional. Em termos eleitorais, foi aí que ultrapassou o PC, que voltou, pelo menos até Setembro, a ser o dono do Alentejo. Mas no resto do país é quase sempre ultrapassado pelo BE. Estes dois partidos no fundo são um bocado complementares e teoricamente poder-se-iam entender, mas o PC nunca conseguirá ultrapassar o seu complexo de grande partido da classe operária e lá vai resistindo. Marxismo, marxismo, União Soviética, Staline, Trotsky, y-en-a marre, não nos chateiem!

Tudo isto está à vista, mas o detalhe mais interessante das eleições europeias foi o score obtido pela Europe-Écologie, ou seja, os Verdes do Daniel Cohn-Bendit.


É verdade, o Danny Le Rouge de Maio 68 agora virou verde. Não é de agora, mas ontem foi o seu grande dia de glória desde há muito tempo. Conseguiu 16% dos votos, colado com o Partido Socialista francês de Martine Aubry que, por coincidência, é filha de Jacques Delors, o político mais prestigiado da história da Comunidade Europeia. Mas, como mostram os resultados, a filha não se saiu lá muito bem. A conclusão dela é que o seu PS sózinho não vai lá e vai ter que se entender, para começar, com os Verdes do Danny. Extraordinário!

Extraordinário, porquê?

É porque de todos os partidos que se apresentam situados à esquerda, estes Verdes são os únicos que têm um pensamento estratégico novo. Não se trata de ecologia pela ecologia, aquela espécie de vulgata que fervilha na cabeça duma série de gente chata e triste.

Na sua candidatura, os Verdes franceses apresentaram um compromisso programático para a Europa baseado em nove pilares: emprego, energia, agricultura, direitos sociais, saúde, biodiversidade, direitos humanos e luta contra as discriminações, conhecimento, solidariedade internacional.

Para eles, a recessão actual não resulta apenas das crises financeira e económica. Há outras componentes: crises climática, energética, dos recursos naturais e alimentar. É uma crise sócio-ecológica. A solução para tudo isto não consistirá em distribuir a fundo perdido milhares de milhões de euros para salvar indústrias obsoletas, poluidoras ou deslocalizáveis.

O sector automóvel, por exemplo, vai ter que ser reconvertido. É que a circulação automóvel vai-se reduzir, a sociedade pós-petróleo já começou. Reconverter o sector automóvel é, pois, uma medida de bom senso que tornará as cidades mais humanas e habitáveis. Mas, muitos outros sectores terão também que ser reconvertidos.

Esta gente verde diz muitas outras coisas, só estou a resumir: precisamos de uma aliança entre os assalariados, os artesãos, os agricultores, os pescadores e os consumidores a fim de se orientar a produção de bens e os modos de fabrico e adoptar soluções ecologicamente e socialmente responsáveis.

O que se perspectiva nesta nova linha política é a definição de um novo modelo de desenvolvimento, anti-consumista, anti-produtivista, alternativo à exploração desenfreada dos recursos naturais e da força de trabalho, à vertigem auto-destruidora do capitalismo. Por isso, o lema é pós-capitalista: “trabalho para todos, trabalhar menos e de maneira diferente”.

Partilhemos o trabalho, partilhemos os lazeres, partilhemos o conhecimento e a educação ao longo da vida, defendo eu. Vivamos de outra maneira.

Se a coisa pegar, a política e a Europa poderão ganhar sentido e mobilizar os cidadãos para as próximas eleições.


domingo, 7 de junho de 2009

EUROPA, EUROPA




Eleições, domingo, eleições europeias. Não é empolgante, é uma espécie de obrigação, obrigação para aqueles que acham que votar é um direito, direito obtido ao fim de tantos anos e daí, vamos lá votar. Mais ça ne changera rien.


Portugal nunca teve muito a ver com a Europa, se bem que o iniciador da nacionalidade fosse um conde francês e depois o seu filho é que tomou as rédeas. Os cruzados ajudaram na conquista de Lisboa, os ingleses vieram para cá sempre que os seus interesses estavam ameaçados pelos espanhóis ou pelos franceses.


Os portugueses eram demasiado excêntricos na Europa, Roma era demasiado longe e então tiveram que se fazer ao mar. Cada vez foram ficando mais longe da Europa, os europeus é que vinham cada vez mais atrás de nós para sacar. A coisa acabou mal no século XIX com o mapa cor-de-rosa e o ultimato inglês.


A aliança com os ingleses teve uma grande vantagem, é que o Salazar não teve coragem de romper com eles e aliar-se com o Hitler, que de facto era o que seu coração mandava. Foi para a neutralidade activa e germanófila e assim safámo-nos da terrível guerra. Mas quando esta acabou, ao contrário de que muitos pensavam, não tivemos a democracia. A democracia chegou-nos mais tarde pela via africana dos militares que estavam fartos do “ultramar”. É curioso, tinha que ser uma guerra a dar-nos a tal democracia.


O que é então a Europa do ponto de vista de um português contente com a tristeza nacional?


A Europa substituiu o Brasil como destino para o tradicional emigrante português e isso não mudou. Os portugueses continuam a emigrar para a Europa e o país acompanhou-os emigrando também. A Europa traz muitos turistas e fundos comunitários, que nunca se sabe onde é que vão parar e dá emprego a muita gente que vai para Bruxelas burocratizar. Manda para cá algumas empresas que depois vão à falência ou são deslocalizadas para a Arménia ou o Turquemenistão, tem o euro moeda que impede que o nosso país tenha ido à falência. Por isso, Portugal é um grande país dentro de Portugal.


Se calhar nada disto tem a ver, mas ponho-me a pensar no filme de Roberto Rossellini Europa 51.


É sobre a Europa e o pós-guerra. É uma fábula com Ingrid Bergman no papel duma americana casada com um rico industrial americano, vive em Roma. O suicídio do seu filho, um miúdo de 12 anos, transforma a vida de Bergman. Influenciada por um amigo jornalista comunista, ela decide consagrar-se a ajudar os pobres, as pessoas com dificuldades. Mas a sua cruzada pelos desfavorecidos, pelos doentes e desgraçados, aos olhos do marido, da família e da própria mãe e das pessoas da sua classe, começa a ir longe de mais. Acham que ela ficou louca, logo, fecham-na num asilo psiquiátrico. Os seus protegidos nada podem fazer. Aos olhos deles, ela é uma santa, vão rezar.


Esta fábula é a velha história com os ricos no seu lugar de ricos e alguns transviados que se querem pôr do lado dos mais fracos. Ingrid Bergman é uma espécie de S.Francisco de Assis, o seu principal aliado é um amigo comunista.


Europa 51 continua infelizmente actual a propósito da velha Europa que temos, ainda não conseguimos sair dos dilemas, capitalismo, cristianismo, marxismo. Agravante, não se reconhecem os ideais.


Enquanto falam da Europa Social, os políticos da Comunidade Europeia que mandam e têm poder dão muito dinheiro aos banqueiros e grandes empresários. O capital agradece. Quanto aos trabalhadores, por vezes, fazem greve protestam, mas acham que devem cooperar, dar bons exemplos e, por isso, vão aceitando flexibilizar os seus direitos, sacrificam em nome do emprego e dos superiores interesses das empresas. Fica-lhes bem e os patrões agradecem.


A velha Europa connosco, é esta a Europa por que votamos?


Há outra Europa, a dos ideais da Revolução Francesa, da Comuna de Paris, do 25 de Abril, a Europa de Beethoven, de Leonardo Da Vinci, de Galileo, de João XXIII, de Shakespeare e de Camões, de Frederico Garcia Lorca, de Federico Fellini, de Albert Einstein, de Roberto Rossellini. A Europa do espírito, do amor, da arte e da ciência, a Europa solidária, aberta ao mundo e aos povos, pátria da liberdade e dos direitos, do ideal de justiça para todos.


Por essa Europa eu votaria com emoção, sem me sentir obrigado.




sexta-feira, 5 de junho de 2009

OS CENTENÁRIOS


Manuel de Oliveira pela enésima vez na televisão, não se percebe qual a razão da agenda, mas nada contra. Razões imprescrutáveis as da televisão. Va-t-on savoir.

Casou-se em 1940 e o casal ainda mexe, a jornalista não se interessou muito em fazer-nos perceber como é que um casal dura quase 70 anos em meio a aventuras cinematográficas.

Um homem com mais de 100 anos que tem direito ao prime time, que diz coisa com coisa, que fala de utopia, mas a jornalista não segue, parecia que estava a entrevistar o Cristiano Ronaldo. Senhores jornalistas, encore un effort, cultivem-se, esforcem-se, o país é muito iletrado, mas não precisam de exagerar.

A alma donde vem toda a inspiração do Oliveira é o Porto, é a terra dele, percebe-se, viva o Porto. Douro, faina fluvial, Aniki Bobó, Francisca são mais que suficientes para justificar uma reputação excepcional. A revolução dos idos de Abril foi uma bênção dos céus, o Manel divertiu-se imenso já na chamada terceira idade a fazer filmes uns atrás dos outros. Deus o guarde por muitos e bons que bem merece e nós também!

O homem é centenário, penso que em Portugal haverá cerca de quinhentos com mais ou menos a mesma idade, não têm aumentado muito. Mas provavelmente isso vai mudar bastante no futuro próximo.

No Japão, que é actualmente o país mais envelhecido do Mundo (Portugal ocupa o 7º lugar) e com a esperança de vida mais elevada, no princípio dos anos 70 não havia praticamente centenários. Actualmente são 30.000. Em França, serão provavelmente 330.000 em 2050.

É uma grande revolução.

Ainda não há muitos anos, em muitas sociedades vigoravam proscrições draconianas quanto à velhice. Muitos velhos, chegada a altura prescrita, eram liquidados. Limpeza geracional, os recursos eram escassos.

No filme de Shoei Imamura de 1983, A Balada de Narayama, que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, há uma mulher que, apesar dos seus 69 anos, mantém uma aparência jovem e isso é um problema. É que o prazo de vida na sua aldeia termina aos 70. É mais um caso de amor filial, o filho não se conforma, a mãe dá uma ajuda, parte os dentes para mudar a aparência para ficar mais velha.

No fim, o filho lá carrega a mãe para o alto da montanha, para aquele sítio onde todos os velhos são abandonados ao seu destino. A solidão eterna, completamente sozinhos nos momentos finais. Pungente.

Nicholas Ray em 1960 já tinha apresentado um filme com uma história semelhante, The Savage Innocents, é uma história de esquimós com o truculento Anthony Quinn. O filme tem as suas limitações, um certo etnocentrismo politicamente correcto do início dos anos 60, os bons selvagens, etc. Mas o ponto interessante é quando o Quinn esquimó conduz a sogra lá para um recanto do deserto antártico canadiano. Era uma boca a mais. Lá fica também sozinha.

Pungente, pungente, isso não acabou, infelizmente. Tanta gente abandonada, tentando sobreviver, tristes, a rotina do dia-a-dia, contar os tostões, o médico, a farmácia, a filha que nunca mais deu notícia, a velhice é terrível.

Será que algum dia aqueles a que chamamos velhos, velhotes, que ignoramos, para quem sequer olhamos quando com eles nos cruzamos na rua, serão parecidos com o Manuel de Oliveira? Terão eles direito ao prime time para falar de utopia?

quinta-feira, 4 de junho de 2009

OS RUSSOS


Desde há alguns dias tem sido sempre assim, a televisão com as suas entrevistas e reportagens, a pequena Alexandra que nos entra pela casa dentro com a mãe dita biológica, russa e problemática.

A história é sobejamente conhecida, já se conhecem os detalhes, mas vale a pena sublinhar dois.

No meio daquele cafarnaum triste, pobre e visivelmente deplorável de uma família pós-União Soviética, aparece uma flor aparentemente brilhante e intacta, talvez vinda de outro mundo, a Valéria irmã da Alexandra.

O outro pormenor, que não me atrevo a chamar de sórdido, com a justiça on ne sait jamais, é de extracção portuguesa, o ilustre juiz que mandou a criança para aquele degredo. São todos ilustres ou meritíssimos esses juízes, não se sabe bem porquê, que especial mérito terão as decisões de muitos desses senhores, decisões por vezes, como é o caso, assustadoras? O que pode fazer um indefeso cidadão perante estes eméritos agentes da lei para se defender? Karaté?

Este sr. Juíz, do alto do seu altíssimo poder discricionário, não se sentiu na obrigação de tentar conhecer minimamente o que é a Rússia para onde mandou a Alexandra. Quero dizer a Rússia mental, social. A Rússia, não apenas a actual do ex-KGB Putin, mas também a Rússia soviética de Breznev e as suas antecessoras, a Rússia de Stalin e dos czares antepassados de Nicolau II. A Rússia do gulag, a Rússia dos servos da gleba, provavelmente a Rússia de hoje dos muitos assalariados das máfias. Podemos recuar muito no tempo, infelizmente na história deste país meio-europeu, meio-asiático, encontramos sempre sinais fortes e intoleráveis de pobreza e da opressão, vodka e tristeza da alma russa.

E também glória e grandeza dos criadores e dos artistas e dos heróis anónimos quantas vezes sacrificados. Valha-nos isso.

O sr. meritíssimo podia talvez ter-se dado ao trabalho de ler um livro dum escritor russo, um daqueles e foram muitos que testemunharam os sofrimentos do seu povo ao longo do tempo e que, pelo génio dos seus testemunhos, brilham para sempre no Olimpo dos grandes artistas, o Puskin ou o Gogol ou o Dostoievsky, ou o Tolstoi ou o Turgueniev. Ou o Solnyetsine? Ou o Dr. Jivago do Pasternak? Talvez pudesse ter feito um pequeno esforço antes de tomar uma decisão tão grave sobre uma criança indefesa, indefesa note bem sr. juiz, que está a começar a sua vida.

Se não gosta de ler, meritíssimo, talvez não se importasse de ver um filme sobre a Rússia. Agora, com a Internet e com os DVD’s é tão fácil.

Mas, quem sou eu para aconselhar um emérito juiz? Não me atrevo a tal, mas, quando penso em todos este descalabro, o meu espírito não pode deixar de percorrer algumas das mais belas recordações de momentos cinematográficos que vivi graças a grandes artistas russos.


Percorrendo algumas dessas recordações encontro duas histórias filiais russas, que vale a pena meditar.

Andrei Rubliov (ou Rublev, conforme as transcrições), filme de Andrei Tarkovsky, terminado em 1966, exibido pela primeira vez em Cannes extra-concurso em 1969 e estreado na URSS apenas em 1971, reconstitui a vida daquele grande pintor de ícones religiosos, entre 1400 e 1423. A vida do monge é pretexto para Tarkovsky retratar a relação entre o artista, a criação artística e o mundo. O mundo russo medieval, mundo de violências e destruições. A angústia e a impotência do artista que a certa altura, face a tanta destruição, faz voto de silêncio e deixa de pintar.

No episódio do Sino, o meu preferido e um dos nove episódios em que está organizado o filme, acontece a primeira história filial que me veio à memória.
Numa aldeia onde toda a gente morreu, aparecem os soldados do Grão-Duque à procura de um artesão para fundir um sino para a catedral que tinha, aliás, sido incendiada por ordens do próprio Grão-Duque. Mas na aldeia só resta um habitante, um jovem adolescente. Quais são as suas hipóteses de sobreviver? Nenhumas. Mas o seu instinto de vida é mais forte e mais rápido, consegue convencer os soldados que o pai dele, antes de morrer, lhe transmitiu o segredo da construção do sino.

A terrível luta pela vida que enfrenta o jovem no seu desafio para cumprir a encomenda arma-o para superar todas as dificuldades. Consegue fabricar o sino que toca pela primeira vez um profundo e distante som perante o Grão-Duque e a sua corte.
Rublev vai acompanhando e assistindo interessado à epopeia criadora do jovem atrevido. No fim, o criador de sinos chora nos braços do pintor de ícones, confessando que o pai dele não lhe tinha confiado nenhum segredo. Rublev quebra o silêncio e volta a pintar. O jovem artesão vence o seu desafio, recebe reconhecimento e ao mesmo tempo encontra alguém que o admira, o ama e protege, que o apoia, um pai?

Segunda história filial russa, A Mãe e o Filho de Aleksandr Sokurov, filme de 1997.

Neste filme vale a atmosfera quase onírica do que se passa no quarto da mãe e a paisagem à volta. A acção é muito reduzida, o filho que cuida e assiste em todos os momentos a mãe que agoniza na sua cama. A paisagem onde o filho nos seus braços transporta a mãe. O amor entre o filho e a mãe. Oui, l’amour jusqu’au bout. Ça existe, non, Monsieur le Juge?



terça-feira, 2 de junho de 2009

IL SORPASSO



Descobri recentemente um novo sítio para almoçar tranquilamente ao domingo em Lisboa por um preço honesto, felizmente que a inflação está em queda e os perigos da deflação são apenas um fantasma, por enquanto.

O sítio é mesmo novo, não apenas porque abriu há pouco tempo, mas também porque nunca tinha almoçado num stand de automóveis.

Automóveis, automóveis, neste stand nem parece que isto de automóveis já teve melhores dias. A general motors, os reis dos reis dos cadillacs, pontiacs, opels, chevrolets et j’en passe, acabam de abrir falência. Onde é que isto irá parar?

Mas neste novo sítio lisboeta, temos belos carros e principalmente temos a mezzanine, onde nos sentamos a comer uma refinada comida italiana, enfeitada com alguns produtos típicos portugueses. Em baixo lá estão belos carros novos, à espera que algum cliente inspirado, após o agradável almoço, mande embrulhar uma daquelas maravilhas acabadinhas de sair da fábrica.

No stand parece haver mais carros do que na avenida da República que se espreita do alto da mezzanine. É que o último domingo de Maio ficou repentinamente muito quente de pico de verão e os carros preferiram mudar-se para a praia. Bela ideia. É que Lisboa transfigura-se, fica simpática com outra respiração, abençoados carros que optam pelo bronzeado.

A avenida que é uma espécie de auto-estrada com carros para cima e para baixo, não costuma oferecer grandes motivos de interesse. Mas de repente na quietude dominical torna-se um local ameno e inspirador. Quadro de facto inspirador.

Ponho-me a pensar no Ferragosto romano de 1962, o 15 de Agosto que os romanos, como os lisboetas, aproveitam para rumar à praia. Penso na Roma deserta e no Lancia Aurelia conduzido pelo Vittorio Gassman.

Primeira cena, a cena de todas as cenas de Il Sorpasso de Dino Risi, como diria o defunto Sadam Hussein. No meio daquela praça completamente deserta e com a sua própria cabeça também deserta de qualquer ideia sobre o que é que há-de fazer, Gassman desafia o tímido estudante Trintignant que prepara responsavelmente os seus exames e que inadvertidamente se aventura espreitando à janela o verão romano. Cai na esparrela do Gassman que insiste para irem dar uma volta no Aurélia. No fim da viagem, o tímido Trintignant não voltará aos seus caros estudos de direito, ficará na curva trágica de Calafuria na Toscânia. Afinal, o playboy Gassman tinha as suas deficiências em matéria de ultrapassagens.

Il Sorpasso de Dino Risi é o primeiro road movie europeu, provavelmente o único, a verdade é que não me lembro de mais nenhum. Há quem diga que terá inspirado o Easy Rider do Dennis Hopper, só que este era um filme com motos ritmado por uma das mais belas bandas sonoras de rock de que há memória. O road movie acaba mal em ambos os filmes, mas os contextos são diferentes.

Deste filme do Risi ficou-me a imagem de uma burguesia fascinada pelo seu próprio sucesso, que se diverte imenso mas que não sabe muito bem como tudo vai acabar, veramente nessuno ci crede.

Gassman e Trintignant voltaram a encontrar-se mais tarde em 1976 no Deserto dos Tártaros, último filme de Valerio Zurlini, filmado no Irão.




A história do jovem tenente Drogo, imaginada pelo grande escritor italiano Dino Buzatti, serve a muitas interpretações. Quem quiser escolha a sua, para isso servem as obras de arte.

O Jovem Drogo acaba por entrar no jogo dos oficiais mais graduados que comandam o Forte Bastiani, uma guarnição instalada numa fortaleza na fronteira. Enquanto prescrutam e vigiam o enorme deserto sem fim, os oficiais e os soldados esperam um inimigo que nunca vem.

Mas no dia a dia vão-se ocupando, vão-se conformando com os rituais da vida militar, dos seus privilégios e regulamentos. La guerra è finita, quando o inimigo vier ninguém estará preparado. Sensibilidade anti-militarista? Talvez.

Filme sobre ser-se jovem e ficar à espera, à espera de quê, de deixar passar a vida lá fora? De ficar velho, caquético e morrer? Talvez.

Il Deserto dei Tartari e Il sorpasso com a avenida da República quase deserta e eu na mezzanine confundem-se na minha cabeça na mesma mensagem: sorpasso vem de sorpassare, ou seja, superar, andar em frente, não ficar à espera a ver em que é que param as modas.

Bons tempos aqueles dos Risi, dos Zurlini, dos Buzatti e tutti quanti, Agora, temos que nos contentar com o Berlusconi. Porca miséria!