PEDALAR É PRECISO!

quinta-feira, 31 de março de 2011

A NOITE DO FMI


O Presidente da República falou hoje, 31 de Março de 2011, disse o que toda a gente já esperava, eleições a 5 de Junho, fez mais umas considerações sobre a gravidade da situação. De seguida, recolheu-se a penates, a oeste não houve nada de novo.

O pessoal, o povo se é que essa entidade ainda existe, depreendeu para si próprio que a subida da via sacra vai continuar nos próximos episódios. O povo é soberano e o povo nunca se engana.

The show must go on, tivemos pois direito na televisão às reacções partidárias à reacção presidencial.

O PS e o PSD falaram mais tarde, tarde demais para mim, além de que deste lado já não há pachorra para ouvir sempre as mesmas tretas.

O BE falou através duma deputada, a senhora não disse nada, já estamos habituados. Em frente.

O CDS exprimiu-se com todo o aparato pela voz do seu líder que curiosamente, ao contrário do que é costume, se apresentou completamente entaramelado. Pareceu-me muito a leste da gravidade do momento, falhou.

Veio também o representante do PC, o seu jovem líder parlamentar desparamentado da bela e muito elogiada gravata que lhe vimos há poucos dias.

Ouvimos o jovem líder, conhecido principalmente pela sua pública devoção à popular República Popular da Coreia do Norte a qual, coincidência curiosa, se prepara para entronizar um líder ainda mais jovem do que ele próprio, o qual sucederá em breve ao filho do grande líder Kim il Sung, deixemos de lado a coincidência e passemos ao que interessa.

Disse o senhor deputado, claro que não o vou citar textualmente, ainda bem que vai ser dada a voz ao povo, a situação é grave, a culpa de tudo isto é do PS, do PSD e do CDS. Todos juntos, entenda-se. Na lista dos responsáveis, não acrescentou o BE, percebe-se, o partido não lhe soprou o nome aos ouvidos. Partido é partido, qualquer comunista sabe que não há vida para além das paredes de vidro.

Foi uma noite televisiva informativa muito instrutiva, não porque tenha propriamente trazido alguma coisa de novo mas porque confirmou tudo aquilo que já se sabe ou se adivinha desde há muito tempo sobre o que é o mundo político deste rectângulo à beira mar plantado.

A bancarrota está por dias, a contagem decrescente já começou. Não se trata de um foguetão que vai voar pelo espaço sideral, é pena, é apenas uma contagem para a invasão do FMI e da fina flor da pirataria financeira internacional.

Enquanto tudo isso está a acontecer, o pessoal de S. Bento, a fina flor da república, reage como o famoso cãozinho do Pavlov, se vai haver eleições há que começar a malhar na esquerda, há que começar a malhar na direita, com todo esse desemprego temos que nos defender.

Este é o lado mais primário que pode ser proposto para o teor das explicações do jovem líder. É que o ilustre deputado deve ter emprego garantido, o partido não o vai abandonar, se bem que nunca se sabe, exemplos não faltam.

A questão que poderá ter vindo mais a propósito na vertigem que assalta nesta noite presidencial os espíritos dos telespectadores mais atentos, serão muitos, serão poucos, é outra.

Será genético, ou será casual, ou será apenas defeito mental das células cinzentas, o que é que impede que o PC possa ter momentos de verdade e de honestidade políticas, principalmente em situações-limite como aquela que estamos a viver? O que é que impede o PC de ser capaz de dizer simplesmente a verdade nua e crua? O que é que o impede de afirmar publicamente que a situação de bancarrota em que o país mergulhou, bancarrota que não é apenas nem principalmente financeira, é uma criação dos governos socialistas do agora demitido primeiro-ministro Sócrates?

Alguns poderão duvidar de tal afirmação de tipo categórico, estão no seu direito, mas o que é que impede o PC de dizer a verdade, a verdade sem subterfúgios, o que é leva este partido a misturar os verdadeiros culpados com outros supostos, todos no mesmo saco, sem espírito crítico e sem discernimento? É assim que essa gente faz política?

Se é assim, quanto a honestidade política e a inteligência, temos que concluir que nada os distingue dos seus adversários. Estamos conversados.

Será por reflexo condicionado de esquerda que poupam o PS? Por outras palavras, será que para o PC, o PS é ou já foi um partido de esquerda e que, assim sendo, é necessário defendê-lo, o que poderá ir até a determinadas circunstâncias e limites em que seja preciso engolir sapos?

Se não se trata de engolir sapos, então, por que razão se juntou o Partido Comunista Português no parlamento ao PSD e ao CDS em votações contra o governo socialista?

Última questão, se o PC acha bem que sejam convocadas eleições antecipadas, por que razão não teve a coragem de apresentar em devido tempo, e já lá vão alguns meses, uma moção de censura contra o governo socialista?


Assim, não se sabe onde é que isto vai parar, neste país completamente à rasca.

À rasca, os que estão no poleiro e que apenas estão preocupados com a sua porção de poder.

À rasca, os que não tendo poder, vão batalhando para ir sobrevivendo todos os dias, mas que não sabem o que fazer.

Muita dessa muita gente das gerações à rasca, que não figura nas listas de candidatos, não vai votar no 5 de Junho. A política não lhes vai bater à porta.

Outros vão votar no clube do costume. Estão conformados, estão condenados.

Estamos todos condenados. Bem-vindo FMI! Ouçam o José Mário Branco, está na altura.


quarta-feira, 30 de março de 2011

ELIZABETH TAYLOR









Penso, talvez a despropósito, no livro de Robert Brasillach “Comme le temps passe ». Publicou-o em 1937 e foi fuzilado em 6 de Fevereiro de 1945, por colaboracionismo com os nazis que ocuparam a França.


Era um grande escritor, sabia muito de cinema e admirava em particular o cinema japonês. Do tempo que foi o seu da sua vida deixou um rasto trágico, não apenas para ele.

O tempo passa, o tempo é como um tsunami, por onde passa pouco fica, pouco resta, mas por vezes alguém fica de pé para além desse movimento de tempo. Vai-se subindo a encosta, chega-se lá acima, desce-se e tudo recomeça. Camus, Le mythe de Sisyphe.


Mas, entretanto, passou o tempo tsunami.


Vamos acumulando memórias na nossa cabeça, vão-se acumulando memórias para a história e vão sobrevivendo rastos de algumas estrelas que iluminaram e que continuarão a iluminar a vida de muita gente por muitos e muitos tempos. Não estou a pensar nem em santos nem em deuses nem em mártires, nem em heróis. Existem catálogos inteiros disso, não tenho nada contra.


Estou a pensar em estrelas de verdade, estrelas que não exigem nada em troca, nem sacrifícios nem preces nem doações ou pagamento de bulas.

Estrelas de celulóide, reais, reais pela humanidade que nos revelaram. Mas essas estrelas em que estou a pensar têm também uma “dimensão religiosa”. Espero não me enganar, mas foi o Roland Barthes quem pela primeira vez utilizou essa expressão a propósito das stars de Holywood.

O que me leva a Elizabeth Taylor, a estrela mais luminosa e mais humana de todas as stars. Taylor não morreu, porque em vida criou a sua própria lenda. Taylor não é e nunca será uma estrela mártir como James Dean, nunca precisou nem vai precisar de liturgias de tipo religioso.

Taylor e Dean entraram ambos no Gigante de George Stevens. Foi o último filme de Dean, que alucinou definitivamente no seu porsche a alta velocidade e, por isso, não chegou a tempo de ver o filme. Filme grandiloquente, com algumas ideias que podiam ter sido fortes mas que se perdem em dilemas puramente formais, o dilema entre a tradição das grandes pradarias dos cow-boys e o novo maná americano chamado petróleo, o dilema entre racismo anti-mexicano e o paternalismo bien-pensant em relação aos pobres excluídos sem direitos.

Neste melting pot do Gigante é notório que apenas se salva Elizabeth Taylor.

Alguém poderá apontar um exemplo de qualquer outro filme que não tenha sido salvo por Taylor? Felizmente há exemplos disso. Penso em três filmes que não foram salvos apenas por Elizabeth Taylor, mas nenhum deles inclui Richard Burton, perdoem-me os fãs desse expoente típico do british actor de outros tempos. Na minha memória de cinéfilo ficam como os melhores filmes de Taylor aqueles que ela teve a oportunidade de partilhar com essa outra estrela extra-terrestre chamada Montgomery Clift: Um lugar ao Sol de Stevens (1951), A Árvore da Vida de Dmytryk (1957) e De repente no Verão passado de Mankiewicz(1959).



Não se trata de um pequeno legado.


Raramente o cinema conseguiu voar tão alto no seu esplendor de sétima arte e também tão próximo da proximidade aos sentimentos do ser humano.


Estes e outros filmes de Elizabeth Taylor resistirão a todos os tsunamis do tempo. E ela sobreviverá incólume no tempo indeterminado que lhe está reservado, aquele muito privilegiado tempo estelar que exclui supernovas.


terça-feira, 29 de março de 2011

NOVO REGIME, CLARO



Hoje, ouvi o Ricardo Salgado (Espírito Santo), que é o homem mais poderoso deste país, declarar a uma televisão estrangeira, em inglês língua de banqueiros, que a última vez que Portugal entrou em insolvência foi há muito tempo, foi em 1890.


Alguém lhe deve ter soprado isso ao ouvido, não acredito que o homem estivesse ao corrente, não me parece que tenha tempo para pormenores desses.


Mas, porque é banqueiro, o Salgado não quer que andem para aí a falar da dívida soberana e do endividamento externo de Portugal nem de falências e foi à tal televisão mandar o seu recado aos credores do grande e iníquo universo das finanças e dos mercados internacionais. Estava no seu papel, não o vou censurar por isso, além disso ele não mentiu.


1890 não é um ano assim tão distante, mas é um ano fatídico principalmente por causa da tal insolvência do Estado português e de todas as misérias que trouxe. É também o ano do ultimato inglês e da submissão de Portugal ao velho “aliado” e o ano do princípio do fim do regime monárquico.


É verdade que foram ainda precisos mais 20 anos para a República chegar a Portugal, mas a verdade é que nesse fatídico ano o velho regime dos reis de Portugal e dos Algarves chegou ao fim.


Foram comemorados há poucos meses os primeiros cem anos da dita república, cem anos, quarenta e oito dos quais pertencem a um regime que, embora continuasse oficialmente a ser republicano, não tinha nada a ver com os ideais das chamadas repúblicas laicas e modernas, sendo, pelo contrário, um regime ostensivamente e deliberadamente anti-moderno.


Um regime que se impôs e se incrustou na história do século XX por causa do problema crónico da insolvência do Estado português e que teve durante muitos e tristes anos à sua frente um homem providencial, que aparentemente percebia de finanças.


Em geral, a história não costuma repetir-se, mas muitas vezes ela assemelha-se à portuguesa pescadinha, de rabo na boca.


Ultimato inglês e insolvência em 1890, proclamação da república jacobina e lisboeta em 1910, segunda república fascista e católica em 1910, terceira república pós-colonial e europeísta em 1974, tudo isto aconteceu alternadamente em Portugal no espaço de 120 anos. Já é uma história longa, com muitos protagonistas e muitas cumplicidades entre elites quase sempre incompetentes e/ou corruptas, povo e ou/eleitor cansado e/ou distraído, ignorante e/ou incompetente. Assinalem com uma cruz.


Olhando o que se está a passar agora neste ano da (des)graça de 2011, é natural o rapprochement, o que é provável é que os episódios da histórica alternância política deste último século e um quarto se vão continuar a reproduzir no presente e no futuro, não necessariamente pela mesma ordem.


Certo e seguro é que, para já, o espectro do défice e da insolvência está bem vivo no imaginário e nas preocupações colectivas de um país à beira de um ataque de nervos.


Única consolação nestes tempos quase esquizofrénicos, é que, tenhamos medo ou não de fantasmas, enquanto o pau vai e vem folgam as costas.


Mas, com fantasmas ou sem eles, não escapamos a ser confrontados com aquela que é a única e verdadeiramente séria questão política da nossa actualidade: qual é e quando será o próximo regime?

quinta-feira, 24 de março de 2011

COMPROMISSO HISTÓRICO

Voltámos aos telejornais e às primeiras páginas desse mundo enorme que nos rodeia.

Portugal, o país mais pobre da Europa foi esse o tom das notícias, dos comentários, das entrevistas. Mais pobres ainda do que a Grécia e a Irlanda, humilhação.
O sr. Sócrates deve estar orgulhoso, chegou ao zénite da sua carreira, teve em Bruxelas uma merecida recepção emocionada dos seus ex-pares. Bon voyage!

A campanha eleitoral promete, o PSD já faz promessas não mexe nas pensões de reforma, mas aumenta o IVA. O PS retorque, nós é que tínhamos razão. Perante a ameaça iminente de desemprego dos seus belos tachos, os boys já se activam na oposição.

Uma camarilha igual a si própria, nada parece mudar, essa gente não tem emenda. Algumas coisas, alguém, nós próprios nos podem valer? Ou, será que quem tem razão é o Pulido Valente e o seu pessimismo constipated?

Estamos a chegar a Abril, coincidência, haverá outro Abril?

A situação actual é parecida, mas não é igual à situação de há 37 anos. As coisas têm vindo a acontecer desde há muito tempo, pouca gente minimamente honesta e informada tem ligado aos óbvios sinais. Sinais de problemas graves, de decadência do país que têm passado quase em silêncio.


Na Argentina, houve um tipo chamado Carlos Menem, foi presidente da República, a dita república faliu. A república argentina estava alinhada pelo dólar mas isso não a impediu de falir, antes pelo contrário. Quem sofreu as consequências? Os mesmos do costume, claro, o capitalismo flutua sempre.


Há dois anos, muitos alarves que têm mandado neste país, inebriados na sua euforia pan-europeia, afirmavam arrogantes que Portugal não podia falir, é que Portugal estava no euro. O dólar não valeu de nada aos argentinos, antes pelo contrário, de que é que nos vai valer o euro? Para comprar uma coroa de flores?


Estamos apanhados no meio de uma guerra global, a guerra dos câmbios, e não somos apenas o terceiro elo mais fraco do euro. A situação actual em que estamos entalados é muito mais complicada do que isso, é que temos a enormíssima responsabilidade de defender o quarto elo mais fraco do euro que, segundo a comunicação social internacional é, imaginem, a Espanha, antiga potência imperial na Europa e além-mar. Mas isso já é sabido há muito tempo. Para que tem servido, então, ter um governo e um presidente da República?


Em 1983, batemos à porta do FMI, foi na época em que o Dr. Soares ainda não tinha aprendido a distinguir entre quatrocentos mil e quatro milhões de dólares. Na sua cabeça, a diferença era pequena.


Hoje, o sr. Juncker, ou lá com é que ele se chama, admitiu com conspícuo sorriso, que Portugal ia precisar de uma ajuda de 70 mil milhões de euros. O homem manda nas finanças da EU, preside ao eurogrupo. Deve saber do que está a falar. Ou talvez não, é que estes tipos das finanças fazem-me sempre pensar naqueles serviços de polícia que vão acumulando imensas informações sobre estes e aqueles que julgam mais ou menos perigosos e que, quando as coisas começam a aquecer, não conseguem perceber nada do que está a acontecer.


O Sócrates vai-se embora, bon voyage, o PS vai fazer a sua merecida cura de oposição. Já chega, descansem, não chateiem mais, era bom que também levassem convosco o Cavaco.

Baralhemos, então, para dar de novo as cartas. Cartas novas, entenda-se, sem trafulhices.


Pensemos num programa mínimo, quero dizer máximo, neste momento do que precisamos é saber como agir para restituir dignidade a este país.


Entre os partidos políticos que temos, de direita ou de esquerda, existe gente competente, gente séria. Terão poder para mudar alguma coisa, poderão trabalhar em conjunto, apesar das suas respeitáveis diferenças?


Em Abril de 74, tivemos uma revolução contra um regime anacrónico.


Trinta e sete anos depois, o desafio é mais difícil, porque tem que se lutar, num contexto internacional totalmente adverso, por um país com futuro e com dignidade, um país livre, soberano e solidário.


Comecemos por concordar num compromisso histórico entre cidadãos quaisquer que sejam as suas opiniões ou preferências. Um compromisso solidário para preservar um espaço onde se possa viver em liberdade sem senhores vindos de outras partes. Liberdade, igualdade, fraternidade, é isso, voltamos sempre ao mesmo.



DIRTY SÓCRATES

O circo está aí, não tenho nada contra a gente do circo, estou apenas a usar uma forma de expressão. O Passos Coelho tinha anunciado que o teatro tinha acabado. Anúncio que foi o toque a finados para se começar a chamada crise política que terá tido hoje 23 de Março de 2011 o seu primeiro episódio.



O que o Passos queria dizer nesse anúncio era que ele se retirava, estava farto, retirava-se do papel em que era suposto ser ele que tinha que transportar o Sócrates, empoleirado nos seus ombros, vestido de primeiro-ministro que conduzia convictamente eufórico o país à falência.


Passos Coelho, ninguém o obrigou a entrar na peça, entrou voluntária e conscientemente nessa cena em que aparece a explicar que tem que dar um crédito de confiança ao seu principal opositor, o Sócrates. Assumiu convictamente esse papel? Terá sido mais por receio e por falta de coragem para voos mais altos.


O Sócrates, desde quando o personagem começou a emergir, fez-me sempre pensar, salvaguardadas as devidas proporções históricas e políticas, naquele ilustre político americano que, além de ilustre, chegou a ser muito poderoso mas que acabou mal, o presidente dos USA Richard Nixon. Dirty Richard, dirty Sócrates, gente da mesma cepa, voilà.


Dirty Nixon, protótipo do político mentiroso, do político aldrabão, pronto a tudo para ganhar poder, para conservar poder, para ter poder. Mas o Watergate acabou com ele. Deus é grande!

O “nosso” Sócrates andou perto dum Watergate, infelizmente o deus das democracias, o deus dos desamparados e distraídos e pouco atentos à natureza humana, esse deus não ajudou um país, que é o meu o que é que se há-de fazer, desamparado à mercê das atenções e dos interesses dos pequenos parvenus e dos chicos espertos que acabam por se alcandorar e dar cabo do país, que neste caso, infelizmente, continua a ser o meu.



Ao cabo da história destes terrivelmente longos anos socráticos, que culmina com o episódio de hoje da demissão do dirty Sócrates, chegámos ao grau zero da política. Ao grau zero das portas para o fim do mundo.


Não por causa da demissão, que é muito e demasiado tardia, mas por causa do que antecede e do que virá depois.


No tempo do Salazar, o povo murmurava, não podia nem era capaz de falar abertamente, o povo murmurava, no íntimo de cada um, não estava contente com a sua sorte, com a sua vidinha, a fome, a falta de alimentos, as dificuldades do quotidiano. Mas a resignação cristã, aquela ideologia dos pobrezinhos, enchia-lhe a alma de compreensão, algum fatalismo também. E o povo pensava o senhor presidente do conselho não tinha a culpa, ele era uma pessoa honesta.




No estado a que isto chegou, pode estar a voltar essa fatídica resignação, a compaixão que às vezes se exprime numa espécie de solidariedade que é muito católica e que costuma absolver sobretudo os grandes culpados, os bandidos e outros salteadores.

E assim podemos estar a voltar a esse sentimento de grande desculpa nacional, a uma desculpa descomunal e muita gente hoje por esse país fora poderá começar a afinar por um mesmo pensamento, a culpa não é do Sócrates, o homem tem sido muito atacado, mas, sabe-se lá, se calhar até é honesto.


Tudo depende do conceito, desonestidade é um campo muito aberto, tem demasiado a ver com moral e a moral nem sempre é honesta.


Político honesto não é certamente o Ademar de Barros, aquele brasileiro candidato à presidência do Brasil, creio que foi opositor do Juscelino Kubitschec, era governador dum Estado, talvez S. Paulo, não sei dizer ao certo. Ora, do Ademar dizia-se “Ademar rouba, mas também deixa roubar”, tinha muitos adeptos.


Em Portugal, temos exemplos de personagens deste tipo, não vou dizer os nomes por razões óbvias, até porque não me cabe substituir a justiça, sou contra a justiça “popular”.


Mas quando me refiro a isso de políticos malhonnêtes estou-me a referir a coisas bem mais graves. Em sentido político, desonestidade tem a ver com falsas convicções, tem a ver com mentira e ocultação dos factos, falta de humildade e de sentido das suas próprias limitações, com incompetência, com arrogância e apego paranóico ao poder, a lista é bastante longa.


Pode-se abrir um concurso para desenvolver e completar esta longa lista.


No dia em que foi obrigado a dizer adeus ao poder, hoje dia 23 de Março de 2011, o “nosso” Dirty Sócrates, na forte convicção muito íntima da sua pobre arrogância, acrescentou a sua special touch ao retrato do político malhonnête: ele é uma vítima, foi atraiçoado, andou a lutar pelos interesses do país e, no fim, é obrigado a demitir-se. Queixou-se, queixou-se lendo o teleponto à sua frente para os milhões que assistiram ao seu número de circo na tv. Queixou-se contra toda a gente, só não se queixou de si próprio. Só não teve a humildade de reconhecer que ele é o principal responsável do estado, não é o único acrescente-se, a que o país chegou.


Há exemplos históricos indesmentíveis de políticos mal compreendidos no seu tempo. Políticos que a história acabou por reabilitar. A margem de erro para o nosso juízo nunca é próxima de zero e há sempre um intervalo de confiança, é como nas sondagens.


Mas para tudo há limites.


Do mesmo modo, em todas as situações, por mais desesperadas que possam ser, poderá sempre haver margem para a esperança.


Confiemos, então, esperemos que os eleitores não se vão deixar enganar mais uma vez pelo dirty Sócrates, agora reconvertido no papel de vítima inocente.


Esqueçamos o personagem.


Há coisas mais importantes para discutir, para debater.


Em vez de mais um triste e inconsequente episódio, pode ser que as próximas eleições sejam oportunidade para se sair da crise.


É que a crise já é antiga. As suas origens nasceram quando Portugal entrou para a CEE e os portugueses se embalaram nas promessas fáceis do euro do consumismo (não estou a pensar em euro-comunismo. essa é outra história).


A CEE e o euro parecem ser o nosso Dr. Fausto. Não digo isto por o Goethe ser alemão.


O tempo não perdoa e os países também se abatem. Está tudo em aberto.


terça-feira, 22 de março de 2011

FANTASIA SOBRE O POS-SÓCRATES



Não é um psicodrama, não é uma farsa, será uma tragédia?

Tudo isso, tudo isso, esses qualificativos só dependem do ponto de vista, dependem dos interesses que estão em acção nos bastidores do business, dos gabinetes ministeriais, de quem manipula as bolsas, os mercados, as obrigações, a dívida soberana…

Ao ponto a que a política chegou aqui neste pequeno país, que já não é bem um país, neste protectorado de chapéu na mão, ao ponto a que isto chegou, há gente a esfregar as mãos de contente, há muita gente a ganhar muito dinheiro, uns quantos a ganhar ainda mais poder.

E depois há outros que estão a perder talvez muito dinheiro e outros que vão perder poder, provavelmente todo o poder que os corrompeu para a eternidade, se é que existe isso de eternidade, a memória humana é bem curta.

Em tudo isto, a maioria, aquilo a que por vezes ainda se chama povo, esse pessoal anónimo, pais de família, jovens perdidos, mães aflitas, velhotes que se vão agarrando a bóias de salvação no meio do naufrágio, sem remédios e sem pão para comer, todos os peões inocentes e impotentes deste jogo estão tramados. Que isto caia para um lado ou para o outro, não haverá geração à rasca que lhes valha.

Porque se julgam deuses, os políticos vivem na arrogância saloia de quem acha que põem e dispõem sobre tudo o que lhes aparece à frente. Têm alta opinião de si próprios.

Pura ilusão, quanto mais alto sobem, mais alto será o trambolhão, isso é sabido desde sempre.
Na narrativa política destes seis anos e tal, acho que é a esse ponto do trambolhão a que chegámos, o fim do Sócrates e do seu bando parecem à vista.

Farsa e tragédia. A farsa dos que se acham Luís XIV e que afinal não passam duns parvenus patéticos, duns chicos espertos que andaram a brincar com coisas demasiado importantes e sérias para o seu arcaboiço.

Tragédia, porque outros, muitos outros lhes serviram de capacho ou fizeram de conta que não se estava a passar nada, andavam na sua vidinha, a política aos políticos, a gente cá se há-se de arranjar.


Haverá inocentes no meio disto tudo.

As criancinhas, mesmo e apesar da sua crueldade natural, elas são inocentes.
São inocentes mas não nos ensinam nada.

O que é que se vai passar a seguir no novo acto da farsa-tragédia?


O PEC IV vai para a gaveta, os senhores germânicos ficam zangados, os mercados cortam os empréstimos, o FMI entra aí com a tropa fandanga toda dos abutres da finança, acabam com as pensões de reforma, cortam mais 50% dos salários, aumentam mais 50% do passe social, do preço do pão, do leite, do leite com chocolate, põem a gente a pão e a água, fecham as poucas fábricas que ainda existem por aí não se sabe muito bem onde, confiscam as terras… Não é science fiction.

Estamos nessa borda do precipício.


Quem é que nos vai, não digo salvar, quem é que nos vai ser de alguma utilidade?
O Ricardo Salgado, o Jardim Gonçalves? O Marcelo Rebelo de Sousa, o Sousa Tavares Filho? Aqueles tipos da Sonae, do Jerónimo Martins, da Cimpor…O Cavaco, o Jaime Gama, o Miguel Relvas, o Passos Coelho, o Louçã?


O PEC IV e o Sócrates vão à vida, PSD, CDS, PC e BE vão votar contra. É o que diz a televisão e os jornais confirmam.


Lamento que todos estes partidos que agora vão votar contra o Sócrates e a patroa Merkel não tenham votado contra, todos juntos, mas há mais tempo, contra o PEC I, o PEC II e o PEC III. Afinal, é suposto que esses partidos, uns mais à direita, outros mais à esquerda, confesso que tenho cada vez mais dificuldade em distinguir o que é que verdadeiramente os distingue, esses partidos têm estado na oposição durante todos estes anos de desgraça.


Vamos lá, então, vamos imaginar, eles votam contra, mandam o PS e o seu bando de socráticos para uma inadiável e longa cura de oposição. Mas será que se vão entender quanto ao que é preciso fazer a seguir?


Continuemos a imaginar. Mandam os germânicos de volta ao ouro do Reno, entendem-se com os povos meridionais da Europa e do Mediterrâneo, entendem-se com África e com a América Latina.


Pedem sacrifícios que são de facto necessários, mas respeitam a dignidade do povo, são verdadeiros, são credíveis, pensam no interesse comum, pensam nos fracos, nos pobres, nos mais vulneráveis. Corajosos, fazem frente aos interesses dos poderosos do costume. Apostam na economia social, na solidariedade, abrem oportunidades aos jovens, valorizam o mérito e a honestidade, combatem a corrupção, põem a justiça ao serviço do bem comum, apostam na indústria, nas pescas, na agricultura, apostam no interior do país, apostam na economia, combatem a recessão e ignoram o ultimato germânico contra o espectro do deficit…


A minha mente transvia, será farsa, será Gil Vicente?

quinta-feira, 17 de março de 2011

JOVENS CARNE PARA CANHÃO, ELOGIO OFICIAL


Há um certo mimetismo na carreira política do Doutor Cavaco Silva.

Este senhor pontifica na vida política portuguesa desde há mais vinte anos, graças à reputação que conseguiu a certa altura de ser muito competente em finanças.

O sucesso que obteve sentado sobre essa reputação talvez tenha sido resultado dum inteligente oportunismo, talvez seja simples acaso sociológico. A verdade é que este senhor professor doutor sentiu-se a certa altura desafiado para as lides políticas e, um dia, suponho que o era o bom tempo que convidava, resolveu viajar até à Figueira da Foz para fazer a rodagem do seu carro. Coisa que agora já não se faz. Mas na altura do acontecimento veio mesmo a calhar.

Num país em que em geral o Estado e os que dele se aproveitam costumam gastar acima das suas possibilidades, perceber de finanças pode dar sinais de reputação que conduzem ao poder. Entre nós, alias, tivemos outra experiência semelhante que começou nos anos 20 e que se prolongou durante muitos e maus anos.

A história pós-rodagem do automóvel do sr. doutor é conhecida. Graças à misteriosa aura segundo a qual ele era alguém especialmente competente em finanças e tendo devidamente cumprido a sua obrigação de rodar o dito carro, o doutor economista tornou-se líder político.

Líder que, desde há mais de vinte anos não nos desampara a loja.

Ao fim de todos estes muitos anos, a questão que merece ser colocada a propósito da extraordinária carreira deste professor doutor é a seguinte: além de finanças, de que é que o homem percebe? E, será que percebe mesmo de finanças? Será que percebe alguma coisa de economia?
Talvez sejam questões disparatadas, porque a verdade mais provável é que, na pior das hipóteses, o doutor Cavaco não será menos competente do que a maioria dos nossos economistas encartados.

Donc, la question n’est pas là.

A questão que sempre me coloquei sobre este político profissional é outra.
Será que ele tem qualidades para ser um líder político moderno?

Ao doutor Cavaco sempre me pareceu que, para ser verdadeiramente um líder em sintonia com uma democracia moderna saída de um longo período de ditadura, lhe faltava aquela autoridade, aquela experiência, aquela sensibilidade de alguém que lutou pela democracia e pela liberdade.

É que no seu currículo não existe qualquer sinal nem dessa experiência, nem da mínima preocupação sobre o eventual incómodo que o terá minimanente perturbado durante a opressão salazarista.

Não existe o mínimo sinal de que tenha vivido a experiência vivida por muitos dos jovens seus contemporâneos que, esquecendo os pequenos interesses de um quotidiano exclusivamente apostado em um dia ser doutor, lutaram contra as ignomínias do salazarismo, contra a Pide, contra a censura, que foram vítimas da tortura e dos tribunais plenários, que se empenharam na eleição do General sem medo, que combateram a guerra colonial. O currículo mental do doutor Cavaco é omisso sobre tudo isto. Não há nada a fazer e o resultado está à vista.

O deficit político-curricular do doutor Cavaco ficou ontem, dia 15 de Março de 2011, completamente escarrapachado. Só não o verá quem não estiver interessado em ter chatices.

Este senhor, que é Presidente da República, consciente das suas limitações, devia ter tido a humildade de delegar em alguém bem credenciado a missão de falar sobre o início da guerra colonial, em Angola, esse acontecimento tão doloroso cujos cinquenta anos foram ontem assinalados.

Não é um acontecimento para comemorar. É um acontecimento para deplorar sim. Para condenar, para explicar, para condenar. Mas o doutor Cavaco deu-se ao trabalho de o comemorar, sentiu-se bem nessa missão.


O que é completamente chocante.

Na qualidade de Chefe de Estado, era o momento de ele vir pedir perdão por todos os crimes cometidos pelo Estado português, por todas vítimas inocentes, europeus e africanos, da política criminosa do Estado Novo de Salazar e de Caetano.

Mas, nessa cerimónia, o que se ouviu foram palavras sinistras que me fizeram lembrar as criminosas palavras responsáveis por muitas histórias dramáticas de gente conhecida e de gente desconhecida destruídas pela loucura assassina dos falcões salazaristas.


Ouvi o Presidente da República apelar, vejam bem a gravidade do acto, apelar aos jovens de hoje, jovens que do que precisam é de paz, que precisam de ter futuro e de um país com futuro, para que se empenhem em “missões e causas essenciais ao país” com a mesma coragem e “determinação” dos militares que participaram há 50 anos “na guerra do Ultramar”.


Devia haver um tribunal para julgar esta gente.


Um tribunal para julgar políticos que abusam do seu estatuto de impunidade, para julgar esta casta de gente que acha que tudo lhes é permitido, gente sem moral e sem consciência do significado colectivo das altas responsabilidades que se comprometeram a assumir.


Na escola primária, tinha um colega, também se chamava Mário. Era alto e robusto, era estimado, era calmo, vivia perto da escola, o pai era motorista. Nunca me esquecerei dele.


Fomos às sortes no mesmo ano. O Mário foi um dos primeiros a morrer lá nos confins, no norte de Angola. Morreu “determinado” por uma “causa essencial ao país“, a "guerra do Ultramar”. Desconhecia as razões de todas essas tretas criminosas, mas não houve ninguém para o salvar. Lá ficou, ceifado na sua vida aos 20 anos, como tantos outros.


Nunca perdoarei este epitáfio oficial pronunciado pelo doutor Cavaco em nome de um Estado que nunca poderá ser absolvido pela sua criminosa guerra e as várias gerações de africanos e de europeus vítimas em territórios mártires de África.


segunda-feira, 14 de março de 2011

GERAÇÃO 12/3 CONTRIBUTO PESSOAL


A GERAÇÃO DITA À RASCA NÃO QUER PERDER O SEU LUGAR NA HISTÓRIA. NÃO QUER SER PRECÁRIA. MUITO BEM!

VAI DAÍ, ABRe-SE À DISCUSSÃO PÚBLICA, VENHAM IDEIAS. ÓPTIMO, É DISSO QUE PRECISAMOS.

SEMEAR IDEIAS, COMBATER O MONOPÓLIO DAS CABEÇAS BEM PENSANTES.

RESOLVI, POIS DAR AQUI O MEU CONTRIBUTO.

QUEM TIVER PACIÊNCIA, PODE LER O QUE SE SEGUE, MUITAS DESSAS PALAVRAS JÁ FORAM DISCUTIDAS EM OUTRAS CIRCUNSTÂNCIAS, MAS A DISCUSSÃO DEU EM NADA, TALVEZ A HISTÓRIA ESTEJA A MUDAR, NUNCA SE DEVE PERDER A ESPERANÇA.

É QUE, EMBORA A HISTÓRIA NUNCA SE REPITA, ELA É HABITADA POR MUITOS VULCÕES ADORMECIDOS!

(segue o texto)


POR UM MOVIMENTO DE CIDADÃOS PARA UMA NOVA SOCIEDADE

A manifestação de 12 de Março comprovou que os jovens em Portugal sentem que não têm futuro.
Ora, onde não há futuro para os jovens, não há futuro para o país.
Por isso, todos aqueles que manifestaram na Avenida da Liberdade, jovens e menos jovens, sentem que o seu país está à deriva, sem rumo.
Sentem que está á beira da bancarrota, não apenas financeira mas principalmente duma bancarrota que é social e política.
Sentem que tudo isto vai ter que mudar.
Mudanças mentais, mudanças económicas, mudanças políticas, mudança cultural. Tudo isso está na ordem do dia.

As causas, os responsáveis e as consequências da situação a que isto chegou são facilmente identificáveis:

1. O Estado português foi desde há muitos anos capturado pelos interesses das oligarquias dominantes com o consentimento de Governos conduzidos por políticos medíocres, incompetentes, sem convicções e que faltam à verdade.

2. A corrupção aumentou ao longo das últimas três décadas em paralelo com o monopólio do poder exercido por partidos que se têm preocupado principalmente em promover e proteger redes de interesses alimentadas pela promiscuidade entre o Estado, a política e os negócios privados.

3. A economia tem sido asfixiada pelo poder arrogante dos bancos, pela especulação bolsista, pela prevalência dos interesses de grandes empresas cujos interesses estão representados nos gabinetes do Estado, pela desenfreada exploração e as discriminações de muitos trabalhadores e trabalhadoras, os baixos salários, os congelamentos de salários, os aumentos de impostos, o desrespeito pelo Estado de Direito.

4. As relações laborais, o mercado do trabalho e do emprego passaram a reger-se pela lei da precariedade e os jovens, tal como aconteceu na fase final do Estado Novo estão a ser cada vez mais empurrados para emigração.

5. Portugal é hoje, no plano internacional, um país refém das agências de rating, da especulação financeira internacional e do directório dos países que mandam na Comunidade Europeia, com a Alemanha à cabeça.

6. Existe um descrédito generalizado dos partidos, o que é comprovado em particular pelas elevadas percentagens de eleitores que deixaram de votar ou que votam branco ou nulo.

Com esta situação, tem que se apostar em novos caminhos, novas soluções, novas políticas, novas ideias e projectos, alternativas às políticas que têm dominado o país há mais de trinta anos.

Novas ideias que mobilizem e motivem as pessoas para a intervenção cívica e política, que restituam a dignidade à acção política, a favor da justiça e da solidariedade, na defesa dos legítimos direitos sociais principalmente das pessoas e das famílias mais vulneráveis, na condenação da corrupção e dos corruptos, dos oligarcas e dos políticos incompetentes, na defesa do Estado de Direito e da Democracia.

Para dignificar a democracia e restituir a esperança aos portugueses, é preciso lutar por uma nova sociedade.

Uma nova sociedade solidária, submetida aos valores supremos da justiça e da liberdade, que saiba valorizar os méritos de todos quantos contribuem para o progresso social e que seja capaz de prevenir, e em última instância punir, crimes graves.

Uma sociedade criativa na cultura, na educação, nas artes e na economia, uma sociedade ecológica que saiba preservar e valorizar os seus recursos e a diversidade da natureza, que combata o desperdício e promova o consumo inteligente e adequado ao desenvolvimento justo e equilibrado dos cidadãos num quadro de sustentabilidade económica e ecológica, uma sociedade que valorize a felicidade individual, uma sociedade que invista no conhecimento e na ciência.

Uma nova sociedade baseada na cidadania universal, igualitária e sem discriminações, que assegure a igualdade de oportunidades, a igualdade perante a lei e a justiça, o direito ao emprego e a salários dignos, que não tolere o stress, o assédio, a discriminação e os abusos de poder no trabalho e, de um modo geral, se bata pela realização dos Direitos Humanos.

Uma nova sociedade que reconheça de forma concreta o direito de cada cidadão a ter uma família, a procriar, a ter filhos e a poder educá-los para a cidadania e a plena realização pessoal.

Para que ela exista, esta nova sociedade precisa que se reabilite e se dignifique a política, dando protagonismo à voz dos cidadãos e das organizações de intervenção cívica e moralizando a prática política no interior dos partidos.

Precisa que se democratize a participação cidadã dentro e fora dos partidos, que se reforme o Estado e o sistema político-partidário. Exige que os partidos cumpram as promessas que defendem nos actos eleitorais, que governem de acordo com os programas sufragados pelos eleitores, que governem ao serviço do bem público e do interesse geral.

A obsessão pelo deficit, que tem castigado principalmente os contribuintes assalariados, fez estagnar a economia e promoveu o desemprego, afastou os imigrantes e causou nova onda de emigração apenas comparável à dos anos 60. O código do trabalho aumentou a precariedade no emprego e retirou direitos aos trabalhadores para contentar os interesses míopes do patronato e dos grandes grupos financeiros e económicos.

As poderosas teias da corrupção andam cada vez mais à rédea solta. O descrédito e a inoperância da justiça no combate à corrupção e aos desmandos dos mais poderosos tornaram-se endémicos.


O aumento da idade da reforma e a diminuição das pensões, são episódios da interminável guerra social de que resultaram pelo menos dois milhões de pobres, milhares e milhares de desempregados, muitos sem direito a subsídio de desemprego, milhares de idosos cujas pensões mínimas e miseráveis aumentaram abaixo da inflação e que agora estão congeladas, milhares e milhares de jovens que não conseguem um emprego estável e com direitos, que não conseguem ter direito a ter a sua própria vida, independente da ajuda dos pais, de ajudas ou de biscates.

Não é ao Estado que compete produzir bens, mas tal não o redime no seu papel em assegurar liberdade e justiça, educação, saúde e segurança para todos e solidariedade para com as pessoas e as famílias em dificuldade.

Para cumprir tal papel o Estado deve dispor, entre outros recursos, de um banco central (a Caixa Geral de Depósitos) vocacionado principalmente para financiar a economia social do terceiro sector e as pequenas e as médias empresas, e tem que controlar os recursos essenciais e estratégicos como a água, a energia e as redes viárias.

É também da estrita responsabilidade do Estado regular e supervisionar as actividades das entidades financeiras e do sector privado.

Os Serviços Públicos deverão ser eficazes e estar sob o controlo permanente da sociedade civil a todos os níveis. Devem ser estruturados e dirigidos por forma a que seja banido o clientelismo e o controlo pelas oligarquias partidárias. A gestão de cada organismo deverá ser da responsabilidade de gestores que sejam providos nas suas funções através de concursos públicos transparentes, com júris acima de qualquer suspeita capazes de julgar de maneira imparcial cada candidato tendo em conta a sua competência e qualificações e provas dadas em relação ao cumprimento das exigências e das finalidades do serviço público.

A qualidade de cada serviço deverá estar em permanência sujeita ao escrutínio público e à avaliação dos cidadãos e, quando desvirtuada a qualquer nível que seja, deverá ser de pronto criticada, investigada e corrigida.

O desenvolvimento económico deve ser social e ecológico, deve subordinar-se aos direitos sociais e à preservação dos recursos naturais.

Uma forte consciência social e uma nova consciência ecológica não podem tolerar a lógica do desperdício e os excessos do consumismo e as escandalosas desigualdades entre quem tudo tem e quem nada tem.

É condenável e deve ser combatido o aumento brutal das diferenças e das desigualdades salariais. Deve ser aplicada uma nova ordem fiscal que alivie os mais baixos rendimentos e seja mais exigente em relação aos mais privilegiados.

O principal direito social é o direito ao trabalho, o mais básico e estruturante. O emprego com plenos direitos e o pleno emprego devem ser os principais objectivos económicos a alcançar.

Deve-se lutar por um novo modelo de desenvolvimento que se subordine não apenas ao direito ao trabalho e ao pleno emprego, mas também ao direito ao lazer em todas as idades e ao direito à formação e à cultura, à felicidade e à realização pessoais ao longo do ciclo de vida de cada um, na infância, na adolescência e na juventude, na idade adulta e na idade sénior.

Pleno emprego e trabalho para todos são exigências essenciais que implicam a partilha do trabalho e trabalhar menos horas.

O desenvolvimento económico terá que ser mais igualitário, mais justo, mais prudente, mais racional e mais preocupado com o futuro da Humanidade. A defesa desse futuro implica o fim do modelo económico baseado na ditadura dos interesses que privilegiam o lucro em detrimento dos imperativos de uma ética humanista.

Tem que ser travada definitivamente a engrenagem que assenta na exploração, sem quaisquer limites éticos ou considerações sociais e ecológicas, dos recursos naturais e da força de trabalho. Uma engrenagem determinada cegamente pela ambição paranóica do crescimento ilimitado, dos lucros sem fim e do poder absoluto do dinheiro.

Para quem tem dinheiro e poder os pobres não existem, os trabalhadores são descartáveis. Ora, o direito de propriedade não é um direito de vida e de morte, é um direito com deveres para com a sociedade, incluindo deveres de solidariedade para quem trabalha e para quem precisa.

Num novo modelo de desenvolvimento justo, racional e com futuro, o terceiro sector livre das peias que hoje o desfiguram, com capacidade de iniciativa e inovação, deverá desempenhar uma função crucial.

Entre o sector público, que deve ser regulado pelas instituições democráticas e o sector privado, que deve ser regulado pelo mercado e pelas leis da República, o terceiro sector pode ocupar-se de uma multiplicidade de actividades úteis à sociedade e à coesão social, que não se enquadram nem nas lógicas estatais nem nas regras mercantis, assim estejam reunidas as condições estruturais propícias à autonomia do sector e das entidades socioeconómicas que o compõem.

A economia do terceiro sector é uma economia solidária, social, promove o emprego, a inserção profissional dos jovens, promove a integração socioeconómica dos excluídos e deve orientar-se para o bem-estar das famílias e para organizar a herança patrimonial, tanto ecológica como social e edificada, para perspectivar um futuro confortável para as novas gerações.



O terceiro sector tende para a autogestão, para a igualdade e para uma relação atenta e interessada com o ambiente. Nele podem integrar-se cooperativas de produção, cooperativas de distribuição associadas a produtores e a cooperativas de consumo, cooperativas de ensino, culturais e artísticas, associações sociais.

O terceiro sector promove também a auto-organização dos produtores em empresas sem fins lucrativos, quer sejam iniciativas de criação de auto-emprego ou empresas que sucedam a empresas privadas em processo de falência.

Nos casos de empresas em processo de falência ou que pretendem encerrar as suas actividades, deve ser reconhecida legitimidade aos respectivos trabalhadores para convocarem a intervenção do Estado com vista à transferência dessas empresas para um regime de propriedade social, sendo simultaneamente avaliada a viabilidade económica do projecto que apresentam para salvaguardar os postos de trabalho, quer seja no sector de produção em que a empresa funcionava, quer seja em nova área.

Com vista à reconversão de empresas em falência ou à criação de novas empresas, a funcionarem em regime de economia solidária, os produtores interessados deverão apresentar propostas e estudos de viabilidade, podendo nessa tarefa apoiados por universidades ou por politécnicos, por serviços técnicos do Estado ou por associações devidamente acreditadas e apoiadas pelo Estado.

Os três sectores podem conviver e até cooperar, a bem do desenvolvimento e da prosperidade social e económica. O sector público e o terceiro sector estão naturalmente vocacionados para actividades de carácter colectivo e solidário. Na medida em que o usufruto da propriedade privada deve tender para assumir valor social, também o sector privado deve reger-se por finalidades solidárias e a actividade empresarial deve ser devidamente avaliada e recompensada, quando for caso disso, em função dos seus contributos e práticas sociais.



A política do futuro, a política para uma Nova Sociedade deve ser pacifista, contra a violência e contra o terrorismo, uma política que, na esteira do Mahatma Ghandi, considera legítimo o direito à desobediência civil e à resistência pacífica contra os abusos do poder e as injustiças, e na luta por causas públicas relevantes.

Um Movimento de Cidadãos para uma Nova Sociedade deverá estar sempre aberto para acolher todos quantos se revejam na necessidade de se resgatar a política e a democracia da corrupção, independentemente das suas ideias políticas mais específicas. Sempre disponível para reinventar a política.

Uma política que deverá dar protagonismo às mulheres, aos jovens e aos seniores, tolerante, aberta à sociedade, um movimento construído a partir do que é local, que privilegiará a vida autárquica e os orçamentos participativos, que defenderá o associativismo autónomo, que conduzirá a sua acção de maneira atenta e à escuta da sociedade, em colaboração com grupos de cidadãos, associações cívicas, sindicatos e empresas do terceiro sector.

O Movimento de Cidadãos para uma Nova Sociedade deverá organizar-se com vista a intervir activamente na sociedade.



Face às leis actuais, deverá decidir qual o caminho a tomar. Se necessário, no imediato e considerando a necessidade que é urgente que se torne socialmente activo e assuma um lugar proeminente na comunidade política, poderá considerar a hipótese de se transformar em partido, sem que isso implique que venha a perder o seu carácter de movimento aberto à livre participação dos cidadãos.

Para a concretização desse objectivo, o Movimento de Cidadãos para Uma Nova Sociedade põe à discussão as seguintes questões:

1. A constituição de núcleos locais de discussão acerca das alternativas organizativas do movimento e de um programa político mínimo.
2. Com vista à definição desse programa, discutir, entre outros, os seguintes temas de reflexão:
• Economia solidária e ecológica, livre iniciativa, criação e distribuição de riqueza, criação de oportunidades de emprego
• Leis do trabalho, estabilidade profissional e subsídios de desemprego
• Ciclo de vida, saúde, educação, lazeres, reformas e pré-reformas
• Propinas, bolsas de estudo e acção social escolar
• Sistema de ensino, qualificações e acesso ao mercado do trabalho
• Pobreza, desigualdades e discriminações sociais
• Reforma do Estado, da Justiça e do sistema político-partidário, erradicação da corrupção
• Papel do Estado, investimento e serviços públicos
• Equidade territorial, humanização das cidades e desenvolvimento do interior
• Avaliação da União Europeia e qual a sua viabilidade, utilidade e futuro políticos. Alternativas à União Europeia.





domingo, 13 de março de 2011

GERAÇÃO PRECÁRIA?

Cito de memória, “um espectro ameaça a Europa, o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa se unem para o conjurar.» São as primeiras palavras do Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, publicado pela primeira vez em Fevereiro de 1848.
1848, ano crucial na história europeia, provavelmente o ano mais intenso e dramático do século XIX. Não houve então propriamente uma revolução, houve várias tentativas, de facto acabou por ser apenas uma febre que varreu a Europa de oriente a ocidente.

Durante alguns anos fui um habitué das manifestações na Avenida da Liberdade, ultimamente menos.

Manifestações desenhadas a compasso, palavras de ordem quase sempre as mesmas, tudo um bocado cansativo e algo deprimente, serviço de ordem, carrinhas com altifalantes, tudo obediente atrás do andor.

Declique na minha cabeça, quando cheguei hoje à avenida da Liberdade, era cedo mas o sol já ia declinando ainda estamos no inverno, veio-me à ideia o ano de 1848 e o espectro anunciado pelo Marx e pelo Engels.

Fiquei ali a admirar aquela multidão compacta, que avançava em bloco ocupando na sua marcha toda a avenida em largura entre o S. Jorge e o Tivoli. Muita, muita gente, impressionante, gente jovem e alegre que nunca tinha visto desfilar na avenida das liturgias comemorativas da esquerda portuguesa. Para mim foi uma estreia.

Momento emociante, segurei-me a uma árvore, será que ainda há por ali árvores, provavelmente era um automóvel?

Na altura não me dei ao trabalho de perceber isso de 1848 e do espectro. A associação de ideias era um pouco bizarra. É que não sou propriamente adepto de Karl Marx e quanto àquele distante ano europeu, ele traz-me à lembrança muitas desgraças.

Acompanhei o desfile até ao Rossio, fiquei um pouco decepcionado, estava convencido que aquele pessoal todo ia acampar mais para baixo, no Terreiro do Paço.
É que nestas últimas semanas tenho imaginado as massas populares da Praça Trahir ocupando a praça do comércio à beira Tejo.

Também é verdade que na minha memória ficou a imagem do Pinheiro de Azevedo, com o Sá Carneiro ao lado, a gritar „o povo é sereno, é só fumaça!“ Não é uma recordação brilhante.

Deixemos as recordações e as fantasias.

Haverá agora neste ano de 2011 um espectro na Europa, e se há, que espectro é esse?

Para as classes dominantes do norte da Europa com a Alemanha à cabeça, é útil que haja um espectro, isso cria boas oportunidades de negócio e torna o seu poder mais forte. Inventaram, pois, um espectro e deram-lhe o nome de déficit. É um espectro que habita nos países da Europa do Sul, os PIGS, gente muito gastadora, gente pouco recomendável e que, por isso, convém assustar.

É verdade que em 1975, o espectro do Engels e do Marx pairou aqui por estes lados da ocidental Ibéria e que, nessa altura, a velha Europa poderosa e bem instalada se assustou. O dr. Soares tornou-se então um estadista popular e respeitado, tendo-lhe sido confiada a missão de afastar o fantasma para longe. Em recompensa pelos serviços prestados, tornámo-nos parte da tal Europa.

Vejo desfilar pela avenida abaixo aquela multidão compacta de jovens, jovens gritando contra a precariedade, contra os falsos recibos verdes, os falsos contratos, a casa dos pais, contra os políticos, contra o futuro sem futuro, muitos jovens que manifestamente começam a deixar de o ser e que não têm ainda vida própria.

Precariedade, lei do mais forte, lei da selva, lei sem lei, tudo isso me faz pensar na revolta contra o capitalismo sem moral e sem lei de 1848.

O mesmo capitalismo dos capitalistas sem moral e sem lei de hoje, capitalistas mais fortes e impudentes do que nunca, o sistema que domina, manipula e sopra aos ouvidos dos políticos o que eles devem fazer.
O sistema de poder que impõe a austeridade em nome do deficit, para poder explorar as pessoas como coisas, como mercadorias, como quantidades de um puzzle do mercado de capitais.

Um sistema aparentemente invulnerável, aparentemente sem brechas.

No dia 12 de Março de 2011, vi com emoção aquela multidão compacta descer a avenida simbolicamente chamada da Liberdade. Vi também um grande cartaz onde estava escrito Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

Pensei em 1848, lembrei-me do espectro que nessa época assustava a Europa e fiz o meu íntimo voto: talvez esta geração não seja precária.

quinta-feira, 10 de março de 2011

A IMPERATRIZ LEOPOLDINA



Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena (em alemão: Caroline Josepha Leopoldine Franziska Ferdinanda von Habsburg-Lothringen) (Viena, 22 de Janeiro de 1797Rio de Janeiro, 11 de Dezembro de 1826) que, no Brasil, passou a assinar Maria Leopoldina e Leopoldina, foi arquiduquesa da Áustria, primeira imperatriz-consorte do Brasil, regente do Brasil em setembro de 1821, e, durante oito dias, em 1826, rainha-consorte de Portugal.

Retirei estas informações da Wikipédia, confesso que nunca tinha ouvido falar desta senhora, fiquei curioso e logicamente fui a correr informar-me. Não dei o meu tempo por mal empregado. Descobri que Dona Leopoldina e Leopoldina foi uma mulher de muitos méritos e que, infelizmente, sofreu um destino muito difícil e trágico. Uma mulher mártir, mais uma entre muitas e muitas, paz à sua alma.

Obrigado, dr. Miguel Sousa Tavares.

É que, na passada segunda-feira, deixem-me fazer as contas, foi no dia 7 de Março de 2009, tive o extraordinário privilégio de ouvir este comentador residente dos telejornais da segunda feira da SIC afirmar com a mais íntima convicção, por volta das 20,30 mais minuto menos minuto, que se não tivesse sido a imperatriz Maria Leopoldina, não teria havido abolição da escravatura no Brasil.

Este comentário em tom absolutamente categórico caiu do alto do pensamento do distinto comentador em resposta a uma pergunta da jornalista ali sentada ao lado sobre assuntos de actualidade, ela queria saber o que é que ele, comentador oficial da SIC, pensava sobre essa história dos homens da luta que ganharam o festival da RTP (há quantos anos é que não ouvia falar desta coisa?) e também o que é que ele achava sobre a manifestação da chamada geração à rasca, marcada para o próximo dia 12 de Março, Sábado.. Havia um nexo óbvio entre essas duas questões.

São de facto assuntos de actualidade e não só (ou seja, são de actualidade mas também podem ser assuntos de futuro).

Pelo tom do distinto comentador deduzi que, para além dele, muitas outras cabeças bem-pensantes deste país, cabeças pensantes que, com a arrogância própria de quem está na crista da onda, se manifestam deveras preocupadas com o que ele, Dr. Tavares, designou de demagogia popular e suas nefastas consequências. Referia-se, claro, à Alemanha, aos mercados, às agências de rating, finanças, negócios, bancos, e, deduzo eu, a viagens a sítios muito especiais, talvez ilhas Maurícias, Antártida, Patagónia, Chamonix, sei lá, nunca fui a esses sítios e também não tenciono ir. Trípoli?

A propósito dos homens da luta e da manifestação do dia 12, o Dr. Tavares, depois de referir a imperatriz, acrescentou demagogia popular, onde é que ele quereria chegar?

Demagogia popular, democracia popular, lapsus linguae?

Por mim e esta é a minha interpretação pessoal, depreendi que o que ele, comentador encartado, queria dizer é que quando o povo se manifesta ou vem para a rua isso é contra a democracia. Porque a democracia é assunto sério, é coisa reservada, exclusiva, é para profissionais da política, para gente do parlamento, do governo, do Estado, gente com autoridade.

Se o povo vem para a rua gritar, se protesta, se levanta a voz, isso é pura demagogia, demagogia popular, claro, mas demagogia e isso não é aceitável, é mesmo muito perigoso.
Nos tempos que correm, com o país à beira da falência, o melhor que o povo tem a fazer é evitar cenas indecorosas como isso de gritar palavras de ordem, bloquear o trânsito, acampar no Terreiro do Paço, acenar com cartazes, fazer barulho.
Tudo isso dá mau aspecto e assusta os senhores que mandam neste mundo, os alemães da chanceler Merkel, os mercados, nada disso pode acontecer, autrement vai ser uma desgraça.
Coitado do Dr. Tavares, estava mesmo zangado, não sei se era por ser segunda-feira, para mim o pior dia da semana, mas pareceu-me no mínimo deveras preocupado.

Ò Dr. Tavares sabia que a primeira abolição oficial da dita escravatura no Brasil foi aprovada ainda no tempo do Marquês de Pombal mas que infelizmente para muitos milhões de desgraçados a escravatura só foi efectivamente abolida nesse país em 1888 com a assinatura da chamada Lei Áurea? Sabia que nessa altura, o Brasil era o único país ocidental onde a escravatura ainda era legal?


Sabia, Dr. Tavares, que entre a regência da Dona Leopoldina em 1826 e a Lei Áurea de 1888, muitos políticos “demagogos” e abolicionistas deram o corpo ao manifesto lutando por essa causa, sabia que muitos escravos tiveram a demagógica ousadia de desafiar o seu destino, lutando, revoltando-se ou fugindo, assassinando os seus torcionários ou suicidando-se?

Todos os dias somos bombardeados pelos discursos de distintas cabeças bem-pensantes inspiradas por inefáveis sentimento apenas ao alcance de quem foi destinado aos altos desígnios da hegemonia ideológica, ao alcance de inefáveis e bem protegidas cabeças que nos pretendem cloroformizar nas suas redes de mentiras e meias verdades. Entre a espada e a parede, entre o discurso do nós ou o caos.

Discursos hegemónicos muito antigos, há muitos anos que os ouço.

Ou te calas, ou…

Fica em casa, tem juízo, vê lá o que fazes.

Inefáveis cabeças que felizmente acabam sempre varridas pelos ventos da história, nunca mais aprendem. Adeus Salazar, adeus Caetano, adeus Mubarak, adeus Ben Ali. Adeus esclavagistas.

Inefáveis cabeças, que fareis quando a demagogia popular se sentar na rua?

Adeus Merkel, adeus Cavaco, adeus Sócrates, adeus Kadhafi?

Adeus profiteurs, adeus banqueiros, adeus capitalistas?

Dr. Tavares, presumo que não terá surpresas no seu caminho, está bem instalado, bem rodeado, não me parece que algum dia alguma coisa o venha a espantar. Lamento-o por si, mais je n’y peux rien.


Felizmente existem muitos caminhos diferentes, há muitos anos que os homens andam por estas terras, haverá sempre muitos caminhos incertos certamente.

É certo que nunca se saberá antecipadamente quem terá a última, diria antes a penúltima das penúltimas palavras nos caminhos do que classificou como “demagogia popular”.


Corrijo, se me permite e para terminar, nunca se saberá antecipadamente o que poderá acontecer nos caminhos da democracia e da liberdade, igualdade e fraternidade.


Mais de duzentos anos depois da Grande Revolução, tudo isto continua subversivo. Longo caminho!