PEDALAR É PRECISO!

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

LA CINA È VICINA


Entre os intelectuais europeus e políticos de tous bords e a China maoista, proletária e comunista, criou-se há muito tempo uma espécie de atracção fatal. É uma velha história que não terminou, pelo contrário, ela tem todo o futuro à sua frente.


Em 1967, o italiano Marco Bellocchio retratou com mão certeira o fascínio dos jovens burgueses em crise de identidade pela revolução cultural maoista. Fora do maoismo, pas de salut, era a mensagem do filme La Cina è Vicina.


Sabe-se o que é que deu esse fascínio pelo exotismo maoista, as Brigate Rosse, mortes, terrorismo, crimes, vítimas inocentes. Foi esse maoismo europeu e burguês fascinado pela grande marcha e os genocídios perpetrados pelo Mao e seus subordinados que assassinou Aldo Moro, político demasiado avançado e demasiado honesto para o seu tempo. Político honestamente burguês, alheio às fantasias exóticas dos jovens das boas famílias italianas.


Será que a China deixou, entretanto, de estar próxima do espírito dos europeus que mandam nesta coisa patética chamada união europeia?


Tivemos a cimeira para salvar o euro, a segunda no espaço de menos de uma semana a qual, aliás, esteve para ser a terceira antes da quarta. Parece que, no ballet dos sombrios bastidores da reunião, tudo se terá decidido entre a meia noite e meia hora de quinta-feira, quando os bancos disseram que não iam aceitar o perdão de 50% da dívida à Grécia e as 4 da matina quando a chanceler Merkel veio anunciar que havia um acordo sobre a dívida grega, a recapitalização dos bancos e a multiplicação do valor do FEEF.


Passadas algumas horas, com os primeiros telejornais e as primeiras edições matinais dos jornais, os mercados e as bolsas entraram em euforia. Quantas fortunas, quantos especuladores felizes?


Capitalismo de casino, aqui estamos e daqui não sairemos tão cedo.


Passadas as primeiras euforias, percebeu-se que, afinal, a parte substancial do acordo da madrugada de Bruxelas depende da China.


Com o futuro do euro e da união europeia na corda bamba na tal de cimeira, à beira do abismo, em desespero de causa e à falta de melhor solução, a Merkel, o Sarkosy e o Barroso imploraram os bons ofícios da China maoista. Aconteceu um milagre da mundialização, da globalização, chamem-lhe o que quiserem.


Milagre da declaração de falência do capitalismo histórico nascido na Europa ocidental.


São os novos amanhãs que cantam. Os amanhãs maoistas, a luta de classes acabou, a democracia é uma fantasia burguesa, os indivíduos não existem, apenas conta o colectivo.


Os amanhãs que nos esperam.


Esta cimeira da salvação do euro foi genial principalmente porque fechou o ciclo das fantasias daqueles que no final dos anos 60 eram jovens burgueses fascinados pela revolução cultural e que agora, chegados à idade de razão e das altas responsabilidades, têm a grata surpresa de poderem confirmar quanto os seus devaneios juvenis estavam certos. Confiavam no pensamento do presidente Mao, descobrem agora que o grande profeta continua a ser o grande líder do futuro.


Os povos europeus, os empregados e os desempregados, os pobres e os remediados agradecem a clarividência dos burocratas neo-capitalistas que tiveram a coragem de permanecer fiéis aos seus ideais de juventude.



quarta-feira, 19 de outubro de 2011

AS INIQUIDADES DO ORÇAMENTO SEGUNDO O DOUTOR CAVACO


O doutor Cavaco falou, pelo que percebi a ocasião foi o congresso da Ordem dos Economistas, essa venerável ordem responsável por tantas desordens.


Falou e, pela primeira vez em muitos e muitos anos, concordei com duas coisas que disse, e estou-me a referir à versão televisiva do discurso.


Primeira coisa, que seria aliás óbvia se vivêssemos em tempo de racionalidade e de normalidade política, o que não é o caso da situação presente, o presidente classificou de iníqua a distinção, introduzida na proposta de orçamento para o próximo ano, entre as obrigações fiscais dos assalariados do sector público e as dos colegas do sector privado. Os do público ficam sem subsídios de natal e de férias, na melhor das hipóteses durante os próximos dois anos, o pessoal do privado é “perdoado”.


A iniquidade de tudo isto salta à vista, bravo, sr. presidente, foi muito oportuna a sua intervenção.


O governo e o primeiro-ministro já tentaram justificar esta discrepância de critérios ditados pela metafísica ideia de austeridade, mas o presidente, pelos vistos, não ficou convencido. Dou-lhe todo o meu apoio.


De todas as explicações que os donos do governo avançaram em dias recentes, a única que me parece ter algum substracto é a do dr. Coelho quando ele explicou que os salários dos funcionários públicos são simultaneamente receita e despesa do Estado e que, assim sendo, os ditos funcionários tinham que pagar a dobrar.


Ou seja, presos por ter cão e presos por não ter, os funcionários são a vítima natural de todo o frenesim do orçamento-punição engendrado pela direita portuguesa no poder que quer ser mais troitkista do que a troika. Como perguntaria o Karl Valentim, para esta direita, os funcionários públicos, essa gente, será que não se pode exterminá-los? Ódio de classe? Vá-se lá saber, o dr. Salazar sempre tratou muito bem os seus funcionários.


A segunda observação do meritíssimo presidente, igualmente muito pertinente, refere-se aos sacrifícios que estão a ser exigidos aos reformados, sacrifícios que na sua opinião já foram para além dos limites. Mais uma vez, bravo, sr. presidente!
A questão dos reformados não é coisa pouca, é muito vasta, tem repercussões muito mais extensas e graves e não se resume a um problema de iniquidade, o que já seria muito grave. Vou apenas fazer algumas observações.


Por definição, o reformado sempre foi e parece que continua a ser aquele que já deu tudo o que tinha para dar e que, assim sendo, o melhor que tem a fazer é ficar sentado no seu canto enquanto não desaparece rapidamente.


O reformado não tem sindicato, não tem partido, não tem qualquer peso negocial nem reivindicativo, as pernas pesam demasiado, não vem para a rua manifestar, quando muito sai um bocadinho para jogar uma sueca.


Vítima designada, pois, ao reformado podem-lhe cortar na sopa, podem-lhe tirar os remédios, o médico, o hospital, ele vai continuar sentado no seu canto à espera que o levem para o crematório.


Nos tempos que correm, muita gente aspira a reformar-se porque está cansada, está farta do trabalho e dos chefes, mas não consegue, porque não tem a idade, porque não tem suficientes anos de serviço.


Outras pessoas, pelo contrário, gostariam de continuar a trabalhar, porque gostam do trabalho que fazem, porque não lhes apetece serem atirados para o caixote do lixo, porque se sentem motivados para continuar activos. Mas há uma lei inexorável que impede os funcionários públicos de continuarem, a trabalhar a partir duma certa idade. É a reforma-guilhotina, metes lá o pescoço e a lâmina cai-te em cima.


Essa idade da reforma-guilhotina continua a ser a mesma do tempo do saudoso dr. Salazar. Nessa época a esperança de vida no nascimento era de cerca de 50 anos, hoje é de quase 77 anos para os homens, mais de 82 para as mulheres.


Esta história do aumento da esperança de vida foi, aliás, aproveitada pelo governo do saudoso eng. Sócrates para cortar nas pensões de reforma e aumentar a idade mínima para se ter direito à reforma.


Ao mesmo tempo, o governo socrático desencadeou uma vasta propaganda sobre uma coisa chamada de envelhecimento “activo”, uma coisa cuja principal finalidade era justamente justificar o aumento da idade da reforma. Em resumo, a ideia, vamos lá meus senhores, mantenham-se activos, trabalhem mais anos, isso é bom para vocês e, de qualquer das maneiras não há alternativa, pois que a população portuguesa está muito envelhecida e nós precisamos de gente a descontar para a segurança social, blá, blá, blá…


A questão é que temos aqui vários embustes.


Primeiro embuste, o sr. Sócrates, ao mesmo tempo que nos vinha com esta treta do envelhecimento “activo”, proibiu os reformados da função pública de exercerem qualquer actividade remunerada no sector público.


Segundo embuste, o mesmo sr. Sócrates decretou cortes nas pensões dos reformados, cortes que agora estão a ser agravados pelo governo dos ayatollas troitkistas que tomaram conta disto.


Ou seja e resumindo, esta gente que nos desgoverna e que no seu íntimo de classe dirigente nos despreza profundamente, anuncia aos futuros reformados, mantenham-se activos, trabalhem mais anos, isso vale a pena porque depois vão ter uma bela reforma. Bela reforma, sim, reforma esburacada como o casaco dum mendigo, é este o futuro ao alcance de quem passou uma vida inteira a trabalhar e a descontar para a tal de reforma.


Segundo embuste, diz o sr. Coelho e os seus antecessores e os seus correligionários, desculpem lá, nós achamos que o envelhecimento activo é uma ideia óptima mas, quem estiver reformado não pode continuar a trabalhar.


Denegação do direito ao trabalho, tão simples como isso, discriminação social baseada na idade. Não é cor da pele, não é sexo, é a idade, estás velho, não podes continuar a trabalhar.


E aqui voltamos à tal iniquidade, justamente denunciada pelo nosso presidente, entre gente do sector público e gente do sector privado.


Um reformado do sector público não pode auferir remunerações por trabalho honesto prestado a entidades do dito sector público. Se quer trabalhar, que vá para o privado. Um reformado do sector privado pode continuar a trabalhar onde lhe aprouver. Aliás, nenhuma lei o obriga a reformar-se, a reforma-guilhotina é apenas para os funcionários públicos.


Este ataque aos reformados é sintomático do retrocesso civilizacional que vai tomando conta deste país que um dia fez uma revolução cheia de ideais humanistas.
Os reformados descontaram durante anos e anos, na expectativa de uma vida de lazer e de descanso sem preocupações. Estavam enganados.


Ainda bem que o doutor Cavaco se pronunciou.


Pronunciou-se de maneira muito crítica sobre os limites que, no seu entender, foram ultrapassados quanto a uma área tão sensível como é a dos direitos dos reformados. Área sensível em muitos aspectos, a principal das quais é que a imagem mais forte que pode ser dada por uma sociedade é a que nos é transmitida quanto ao modo como essa sociedade trata os seus seniores.


De maneira igualmente crítica, o doutor Cavaco rejeitou as desigualdades de tratamento entre assalariados do público e do privado.


Não acrescenta nada ao meu juízo acerca dos fundamentos dessa intervenção a eventual hipótese de que as preocupações que hoje exprimiu o sr. presidente, possam ter alguma relação com o facto de o doutor Cavaco Silva ser, além de presidente, antigo funcionário público e actual reformado do sector público.



terça-feira, 18 de outubro de 2011

A INDIGNAÇÃO E OS SEUS LIMITES


Não embarquemos em fantasias.


No último Sábado, 15 de Outubro, tivemos a manifestação dos “indignados”. Desfilaram do Marquês à Assembleia de S. Bento, deviam ser 30 mil, o que não é mau. Há sete meses, a avenida da Liberdade foi calcorreada por cerca de 100.000 peões da “geração à rasca”.


Geração à rasca, indignados, alguma coisa mudou entretanto?


Houve mudanças, claro, há sempre mudanças e nos tempos que correm seria um verdadeiro milagre se tudo continuasse na mesma.


Em 12 de Março, estranhamente havia um ar de festa, uma espécie de happening. A maior parte dos desfilantes, que provavelmente vinham para a rua pela primeira vez, manifestavam-se principalmente contra o Sócrates, ponto final. Palavras de ordem, projectos políticos, ideologias, objectivos? Sequência, consequências políticas? Foi toda a gente para a casa, a maior parte ficou à espera do Passos Coelho, o novo salvador da pátria.


Em 15 de Outubro, o percurso foi alterado, o pessoal marchou em direcção ao Rato e desceu para S. Bento manifestar a sua indignação. Indignação contra quê, contra quem?


Olhei com toda a atenção o desfile, as pessoas com as suas mensagens, pareceu-me tudo muito difuso, à frente da manifestação vinha uma grande cartaz com a fatídica percentagem dos 99% que tem sido brandida pelos manifestantes americanos do ocupy Wall Street, um cartaz proclamava a greve geral, não pagamos, ladrões, metam a troika no cu, quero trabalhar, lista interminável disto e daquilo.


Voltemos ao exemplo americano.


O adversário contra o qual manifesta o pessoal de Nova Yorque é Wall Street, o sistema financeiro americano e as injustiças sociais e a miséria de que são responsáveis. O adversário está perfeitamente identificado, e isso só traz vantagens.


Na década de 1960, os jovens americanos que vinham para a rua eram contra a guerra do Vietname. É sabido que este movimento venceu em toda a linha. Não apenas obrigou o governo do Nixon a acabar coma guerra e a fazer a paz com os vietnamitas, como mudou para sempre a sociedade e a cultura americanas.


Será que o movimento dos que querem agora ocupar Wall Street vai conseguir mudanças tão profundas como as que conseguiram os jovens americanos dos anos 60? Está tudo em aberto, o que é certo é que este movimento de 2011 não vai acabar depois de amanhã e vai, no mínimo, condicionar a evolução da política na cena americana.


Por analogia, perguntemos para nós próprios: qual o peso que poderá vir a ter o “movimento geração à rasca/indignados” na cena política portuguesa?


Primeira dúvida que nos vem à cabeça: trata-se dum movimento social ou dum movimento político?


É uma dúvida aparentemente sem sentido, porque pode haver movimentos sociais sem expressão política, assim como movimentos políticos sem expressão social.


Admitamos então que existem neste momento em Portugal movimentos sociais com uma forte base de sustentação, que tem a ver com a pobreza e o empobrecimento acelerado de vastos sectores sociais, o aumento do desemprego e da precariedade e a falta de perspectivas para a inserção dos jovens numa vida com futuro.


Quando é que esses movimentos passarão a reunir condições para se transformarem em movimentos políticos?


A resposta é simples, essa passagem só acontecerá quando os protagonistas, os dirigentes e actores daquilo que emergiu de repente como um vago movimento informal de massas, descobrirem qual a política que defendem concretamente.


Política no concreto, isso implica em primeiro lugar, identificar os adversários, o que remete na situação actual para se saber quem são os responsáveis pelo massacre social que está a ser cometido em Portugal e no espaço europeu.


Pensar o massacre social, económico e financeiro em Portugal e no espaço europeu. Comecem, então, por aí.


Pensar sobre as responsabilidades políticas de todos os protagonistas que têm gerido esse espaço nas últimas décadas. Pensar acerca dos projectos que estão neste momento em jogo e em confronto perante a iminência das falências em dominó dos países europeus do euro. Pensar sobre o fim inevitável do euro, pensar para além do imediato e do curto prazo.


Pensar sobre as responsabilidades à esquerda e à direita, definir alternativas que não sejam justificadas em nome de vagos consensos e interesses nacionais. O sr. Passos Coelho tem obrigação de saber que, no estado de miséria e decrepitude a que chegamos, isso dos consensos nacionais não existe.


Ele sabe bem disso e a sua agenda política é muito clara.


O Sr. Coelho sente-se na pele do Lénine quando este em 1917, diante dos efeitos devastadores da primeira guerra mundial e da deliquescência da monarquia czarista, percebeu que podia dar o golpe e tomar o poder em nome da revolução socialista.


O sr. Passos assume no seu íntimo, em nome da revolução neo-liberal e neo-capitalista que ambiciona para Portugal, o glorioso papel do revolucionário Lenine. O sr. Coelho aspira a ser reconhecido pelos seus patrões europeus nesse papel com todas honras.


Fantasias ingénuas e criminosas, estas que alimentam o espírito do sr. primeiro ministro. Nos seus devaneios neo-capitalistas, ele anda a fabricar amanhãs apocalípticos, não apenas para ele e para os seus correligionários e indefectíveis, mas principalmente para o exército dos tais 99% da população, que são os reféns desses devaneios.


Para os pobres, os muito pobres, para a gente daquilo que era chamado de classe média e agora é uma classe cada vez mais abaixo de cão. Tudo gente obrigada pela Sra Merkel e os seus lacaios Coelho e Gaspar a pagar os desvarios dos tenores do capitalismo.


Pensar a política no concreto, os rebeldes americanos que estão na rua, são os únicos a fazê-lo e, por isso, têm hipóteses de sucesso.


Vejo os manifestantes de 15 de Outubro desfilar e concluo isso da “indignação” tem os seus limites. É uma atitude moral, legítima, mas demasiado vaga, não se percebe qual é o inimigo que se pretende afrontar.


Não se faz política com sentimentos morais, tem que haver objectivos, tem que se saber quais são os adversários, tem que haver uma estratégia e um plano de acção.


O combate contra o massacre social que está a ser perpetrado pela direita que governa a união europeia e o euro precisa dum exército de autênticos combatentes armados de ideias claras, concisas e eficazes.


Podem ser combatentes indignados, a indignação alivia. Mas precisam de armas eficazes, armas que façam mal aos poderes que controlam o dinheiro e os seus circuitos. Armas que atinjam o coração da besta, o coração do capital.


Na guerra insidiosa que está a ser travada nesta época dramática, passa tudo pelo dinheiro.


De boas intenções está o inferno cheio.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CAPITALISMO, MUNDO LIVRE E LIBERDADE


No mercado reservado aos intelectuais, sempre houve serventuários mais ou menos aplicados, mais ou menos encapotados, desta ou daquela capela.


Como avaliar o mérito dos contributos desses prosélitos? A notabilidade intelectual, a qualidade literária, a coerência e a continuidade das ideias?


Nos velhos tempos do PREC, a certa altura o Diário de Notícias passou a ser controlado pelo partido comunista. Lembro-me que não veio daí mal ao mundo. É que, graças ao putsch comunista, aquele “venerável” jornal, que até então apenas se tinha notabilizado por ser uma instituição sempre obediente aos poderes estabelecidos, ganhou o seu momento áureo na história do jornalismo em Portugal. Os editoriais do dito jornal passaram a ser escritos por um tipo pouco conhecido chamado José Saramago.


Saramago não era um intelectual propriamente dito no tal mercado dos intelectuais. Era um assalariado, ia escrevendo onde o deixavam escrever, era um trabalhador da palavra. Era comunista, mas não era pago por isso, ganhava para comer, trabalhando com as palavras. Era um génio da palavra escrita e o DN nem sequer se deu conta do quanto isso era extraordinário.


As palavras podem ser armas, armas de destruição maciça, ou armas de justiça, vá-se lá saber.


Um cavalheiro que já foi director do Público e que por lá continua a escrever, é um desses intelectuais que, no nosso mercado mediático onde se manipulam as palavras, consegue, pelo menos ter como mérito o da coerência. Quando era mais jovem, o distinto comentador acreditava no Mao-Tsé-Tung. Hoje, passados anos e caminhando a história para o seu fim, mantém-se na mesma linha e está pronto para defender por todos os meios o capitalismo, de Estado ou qualquer outro. Continuidade e coerência nas ideias, não o podemos censurar.


No jornal onde escreve, deixou-nos hoje a pérola literária que se transcreve a seguir. “Os que querem manifestar-se contra tudo o que o capitalismo fez de mal ao mundo livre devem lembrar-se que, sem capitalismo, não haveria mundo livre. E que sempre que se quis acabar com o capitalismo também se acabou com a liberdade.”
Examinemos, na sua respectiva ordem, as palavras que inspiram a sua diatribe contra aqueles que designa de “indignados” e outros “ocupas”: capitalismo, mundo livre, liberdade.


Caro senhor, o que é que tem o cu a ver com as calças?


O capitalismo não é um deus do Olimpo, inacessível, sentado no seu trono e imune às tempestades que sopram. Como todas as criações humanas, o capitalismo tem os dias contados. Assusta-o, caro senhor comentador, a ideia de poder acordar um belo dia e descobrir que esse extraordinário mamute multi-secular e multi-poderoso que tanto admira, de repente, se desfez nas tormentas das guerras sociais provocadas pela voracidade suicidária da ganância sem limites dos tenores capitalistas?


O capitalismo tem uma história conhecida, sobre isso não subsistem grandes mistérios por desvendar. Começou por ser uma criação rebelde da legítima e humana ambição dos intelectuais, cientistas, filósofos, mercadores, banqueiros e industriais burgueses. Uma história extraordinária de séculos, mas uma história que não é de todo linear. Não existe capitalismo em sentido teológico, o tal de capitalismo é apenas uma sucessão histórica em que se têm conjugado altos ideais e extraordinários progressos materiais e sociais com crimes hediondos, crimes sociais e crimes de extermínio contra os seres humanos.


Hoje, chegámos provavelmente a um desses extremos, em que uma grande parte da humanidade está ameaçada de perder, no mínimo, a última parcela da sua dignidade.
Situação limite, em que os que conseguem ainda ter um emprego ou os que o perderam de vez têm que expiar os crimes das dívidas soberanas devidas pelos tenores do tal de capitalismo.


O capitalismo é a história das crianças que trabalhavam como escravos nas minas inglesas e em muitas outras, é a história da Krupp e da BMW que construíram a poderosa indústria alemã, que agora manda na Europa, graças ao trabalho dos escravos recrutados pelo império nazi.


Relembremos, na nossa memória, que o capitalismo é a miséria da exploração da mão-de-obra barata, tal como sempre a conhecemos em Portugal. O capitalismo são as empresas de construção civil que se alimentam dos negócios com o Estado, das parcerias público-privadas, da corrupção generalizada, das grandes obras públicas, dos hospitais empresa, das auto-estradas, das scuts, dos contentores do porto de Lisboa, dos túneis e das marinas da Madeira.


O capitalismo em Portugal teve alguns capitães de indústria, Alfredo da Silva é o melhor exemplo, mas nunca teve um capitalista que defendesse a liberdade. Não teve, não tem e não terá. Capitalismo igual a liberdade? Claro, liberdade para explorar o trabalho de quem precisa de trabalhar, sobre isso estamos de acordo.


As oligarquias dos interesses dominantes dominam e controlam os partidos e os governos, dominam a imprensa e a televisão.


Vivemos em democracia e, assim sendo, teoricamente deveríamos ter direito à liberdade de expressão e de imprensa. Fantasia patética, só acredita nisso quem quer, só acredita quem não está para se chatear.


Não fiquemos, então, sentados no sofá a admirar todo esse teatro, o Passos Coelho com o seu orçamento de estado, os economistas a comentarem que sim senhor, a austeridade inevitável e a salvação nacional, a Grécia, a Merkel, o Sarkozy e o G-20.


Admirável mundo novo, chamado mundo livre pelos irredutíveis prosélitos da religião do deus capitalismo.


Ora, o capitalismo há muito tempo que não tem nada a ver nem com liberdade, nem com prosperidade, nem com justiça, nem com direitos.


Somos todos gregos, indignemo-nos contra as indignidades do capitalismo e dos seus mandatários, ocupemos as ruas amanhã e todos os dias depois de amanhã!


Venham para a rua, acordem, passem palavra!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CRISE EUROPEIA E DEMOCRACIA


No quotidiano dos nossos descontentamentos, vamos vivendo as peripécias da crise, crise do euro, crise da Grécia, crise dos países periféricos, crise da dívida soberana. Afinal, que crise é esta?


Se o Marx fosse vivo, provavelmente diria que se trata da crise final do capitalismo.


Tanto quanto a minha memória alcança, o único cenário aceite há séculos por muita gente para o destino final da espécie humana é o do apocalipse, uma ideia catastrofista que nasceu do fundamentalismo cristão medieval. Não falemos então de cenários finais. Como disse o Pinheiro de Azevedo, o povo é sereno.


Serenidade à parte, o que é que esta crise nos revela?


Não é uma pequena crise, tudo indica que se trata duma verdadeira bomba.


Crise do capitalismo? Sim, mas o capitalismo, desde que começou a ganhar o poder em alguns países europeus no séc. XVII, conheceu até hoje muitas crises e foi sempre capaz de as aproveitar em seu benefício.


A principal novidade da crise que estamos a viver é que o centro de decisão dos poderes financeiros, comerciais e económicos do capital se está a deslocar cada vez mais da Europa e do seu filho USA para o Pacífico e suas proximidades.


Esta deslocação não é uma pequena mudança.


A Europa e os USA perderam a sua capacidade de manobra e as consequências, no que diz respeito principalmente à Europa, vão ser tremendas e já estamos a ser atingidos por elas.


O resultado mais visível da nova correlação de forças mundial entre potências do Pacífico e do Atlântico é que o Estado Social europeu parece ter os dias contados.


Não está em causa apenas o Estado Social das prestações sociais, do subsídio de desemprego, do serviço nacional de saúde, da educação pública e ensino para todos.
Trata-se principalmente de democracia e de direitos sociais.


A democracia e os direitos de cidadania que lhes estão associados entraram em processo de dissolução. Entrámos num processo de desvario, em que tudo é permitido, tudo se justifica em nome dos superiores interesses da nação.


Paulatinamente, voltamos ao tempo do Salazar, tornam-se consensuais as referências e os valores de submissão perante os poderes constituídos, perante quem manda.


Chegamos ao ponto de o chefe do governo nos ameaçar de dedo em riste, atenção, ele não quer tumultos. Ameaça séria: duas semanas depois do dedo em riste, a PSP e o SIS vêm divulgar um relatório sobre o que essas “veneráveis” instituições vão fazer perante a ameaça dos ditos tumultos.


Questão completamente a propósito e que ninguém colocou: por que razão é que a PSP faz um relatório sobre os tais riscos de tumulto juntamente com o SIS. Nova PIDE? PIDE social-democrata, mandatada pela troika? Onde é que vamos parar?


O Marx teve razões em algumas coisas. Uma delas foi quando, por volta de 1870, escreveu que a Rússia e a China não tinham condições, de um ponto de vista objectivo, para fazerem a chamada revolução socialista. Razões óbvias, estes dois países continuavam a ser completamente refractários e alérgicos ao capitalismo e, assim sendo, não estavam em condições de ser socialistas. Neste aspecto, o pensamento de Marx era coerente.


O que o nosso amigo Karl não foi capaz de prever é que, passado menos de século e meio, a China se iria transformar em paradigma dominante do capitalismo mundial.


A crise, a crise que estamos a viver e que não sabemos como vai acabar poderá ser apenas uma crise de crescimento do capitalismo na perspectiva da sua mundialização.


E, se assim for, pode-se antever que, enquanto que o século XX, com todas as suas tragédias e morticínios nazis e fascistas, foi um século de afirmação de um certo capitalismo, circunscrito principalmente à Europa, implicado no progresso social, o século XXI será confrontado com o poder de um novo paradigma, o do capitalismo de Estado triunfante, com os seus burocratas, os seus exploradores de mão-de-obra barata, os seus polícias, as suas prisões, os seus comités centrais.


Esta é a crise que mais me assusta. A união europeia e a sua moeda única, já o escrevi aqui várias vezes, são uma perigosa utopia que nos encurralou numa espécie de união soviética, que foi a primeira versão, felizmente falhada, do capitalismo de Estado.


É evidente que já entrámos na fase da desregulação da própria crise, não se sabe aonde é que isto vai parar.


Os valores da democracia, os direitos individuais, os direitos sociais entraram em processo de liquidação. Primazia aos bancos, primazia às finanças, primazia aos ricos, primazia aos poderosos. Chegámos a um ponto em que os euro-burocratas, e os empregados deles que mandam em nós, já não se dão ao trabalho de disfarçar as suas verdadeiras intenções.


Basta olhar o exemplo quotidiano do que passa com a Grécia para percebermos o estado de dissolução democrática a que chegou a Europa que inventou o capitalismo.
Crise do capitalismo, apocalipse now, Wall Street?


Não nos confrontamos apenas com questões de longo prazo.


Para já, no nosso esforço de percebermos o que está a acontecer, temos que nos preocupar com o presente e o futuro da democracia na Europa e arredores.