Os
anos vão passando, o que é que se pode fazer?
Dentro de meses, o 25 de Abril fará 40 anos, a
República fez há pouco 100 anos, o Dr. Mário Soares vai a caminho dos noventa.
O
Dr. Soares é alguém que me remete para muitas memórias, recordações, coisas que
foram acontecendo neste país. Confesso que nunca fui seu correligionário, antes
pelo contrário.
Votei
a seu favor uma única vez, foi na segunda volta das presidenciais contra o
Freitas do Amaral, o meu candidato era o Salgado Zenha, faço questão de o
dizer. Não é que tenha propriamente engolido um sapo vivo, nunca andei às
ordens do Dr. Cunhal, votei pelo Soares porque assim entendi, sempre votei em
quem quis votar. No caso deste meu voto pelo Dr. Soares, penso que acertei.
Na
minha modesta opinião, ele tinha sido um mau, não vou dizer péssimo, primeiro-ministro,
mas acabou por ser o melhor presidente da República que tivemos. Tiro-lhe o meu
chapéu, é verdade que, por vezes, uso chapéu.
Retomemos
o fio à meada. Nunca fui apoiante do Dr. Soares.
Tive
a oportunidade de o conhecer em Paris quando ele tinha acabado de chegar de S.
Tomé, depois do exílio imposto pelo Marcelo Caetano. Almoçámos com outras
pessoas que não vêm ao caso, num restaurante grego, em frente ao hotel onde ele
estava hospedado, na rua de L'École de Médecine, mesmo ao lado do boulevard S.
Michel e dum cinema d’art et d’essai.
Nessa
altura, ele andava a organizar o partido socialista, que seria fundado alguns
meses depois. Eu era um jovem radical ultra-esquerda, nem maoísta, nem
comunista, nem trotskista, era mais um crítico, estava convencido que tudo tinha
que ser repensado. Fantasias próprias dum jovem expatriado e desiludido.
Voltemos
ao Dr. Mário Soares. É alguém que foi muito maltratado por um certo populismo
salazarista, saudoso do império colonial. Foram-lhe assacadas todas as culpas
pela descolonização e, especialmente, pelo que se passou com a independência de
Angola. Não sou historiador, apenas testemunhei os quilómetros de contentores e
de tralha desembarcada no porto de Lisboa ao longo de quilómetros entre o cais
da Rocha e a Torre de Belém e as bichas de retornados na rua da Junqueira junto
ao IARN. Tudo isso foi acontecendo durante alguns meses.
Teve
o Dr. Soares alguma coisa a ver com isso? Não, é peremptório, não teve nada a
ver. Sabe-se que as negociações para a descolonização, que culminaram com os
acordos do Alvor foram conduzidas pelo Major Melo Antunes. O Dr. Soares não
meteu nem prego nem estopa.
Quem
é que foi o culpado dos quilómetros de contentores e de tralha enviada das
colónias? Os culpados saltam à vista de qualquer mente minimamente informada e
não sectária: em primeiro lugar, o Doutor Salazar, o supremo mentor do sistema
colonial; a seguir vem o rol dos indefectíveis do império: o Doutor Marcelo
Caetano, o almirante Américo Tomás, o general Kaúlza de Arriaga e toda a tropa
fandanga que jurava pela irrisória e criminosa fantasia das províncias
ultramarinas, cheia de fanatismo e ignorância das realidades, a ignorância dos “ventos
da história” que tanto irritavam o homem de Coimbra e Santa Comba.
Porquê
toda esta retrospectiva?
O
Dr. Mário Soares representa, nestes últimos quarenta anos, a geração de
políticos criada na oposição ao regime do Estado Novo, criada e activa nessa
oposição. O Dr. Soares teve o privilégio de ser apoiado pelo exemplo de um pai
que tinha sido ministro da I República e por intelectuais e políticos, como,
por exemplo, António Sérgio, que o prepararam par o seu destino. Foi preparado
e cumpriu o seu destino. Incontestável, irrevogável.
Incontestável,
lúcido e crítico, O Dr. Soares chegou aos seus quase noventa anos.
Incontestável
como político capaz de lutar pelas suas convicções, pelas suas intuições.
Político que não confunde tricas e pequenas coisas com o que entende ser
estratégico e essencial. Político com instinct killer quando necessário em
relação aos seus próprios compagnons de route.
Político
que se enganou tantas e tantas vezes, que se aliou com os seus adversários, mas
que nunca andou a arranjar pretextos e desculpas. Que assumiu as suas escolhas,
mesmo se elas estavam erradas.
Político
devotado à política, à luta e ao debate políticos, à luta de ideias, à nobre
arte da política.
Político
que rompeu com o próprio partido que fundou, quando entendeu que tinha que o
fazer. Existem ainda políticos desta dimensão?
Procuro
e o que é que encontro?
O
Dr. Soares teve vários sucessores no PS, pessoalmente o único que me inspirou
alguma simpatia política foi o Ferro Rodrigues. Foi trucidado.
Por
mais “ternura” e carinho que o actual chefe do PS, António José Seguro, possa
exprimir em público pelo fundador do PS, ele nunca conseguirá apagar a tristeza
das suas limitações enquanto aspirante a político com uma dimensão comparável
à dos verdadeiros políticos como Mário Soares.
Ele
está afundado num abismo insondável e irreparável, está condenado a ser um dos representantes
da mediocridade política da geração jota a que pertence, essa geração que está
a milhares de anos-luz da geração dos fundadores da democracia em Portugal.
A
sua “ternura” pelo Dr. Soares, expressa em publico para esconder a sua falta de
coragem em responder directamente às críticas de Mário Soares ao envolvimento
do PS na farsa da “salvação nacional, essa “ternura”, além de racista,
paternalista e discriminatória, apenas comprova a incapacidade do actual líder
do PS em atingir, mesmo que daqui a cinquenta anos, o estatuto dum verdadeiro chefe
político, digno da arte da política.
Como
político, António José Seguro é um zero à esquerda, não tem nada que o
distinga, nada que lhe confira um destino especial. Mas, este falhanço do António
José Seguro não é excepcional, em Portugal,
Ó
dr. Seguro, não vale a pena chorar. Infelizmente, na história destes últimos
quarenta anos portugueses, contam-se pelos dedos os políticos dignos da verdadeira
e nobre arte da política. As consequências dessa persistente falta de vocações
saltam à vista.