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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

“NOVO RUMO” OU “RUMO À VITÓRIA”?


A política de esquerda à portuguesa, além de cansativa e demasiado previsível, parece-se cada vez mais com um recreio de escola, com os miúdos a brincarem e a agredirem-se uns aos outros, é verdade que dali não vem mal ao mundo, na pior das hipóteses, vai ficar tudo na mesma.


A esquerda portuguesa, essa é a tradição, está cheia de boas intenções e de ideias gerais generosas. Com alguma frequência e ritmo ao jeito de um baile bem ordenado, lá vão aparecendo os eventos, como agora se diz, em que a dita esquerda manda mensagens supostamente dirigidas ao povo.


Não me estou a referir às procissões que desfilam aprumadas e gloriosas pela avenida da Liberdade abaixo. Gloriosa avenida da gloriosa liberdade!


Procissões sindicais, na maior parte das vezes, procissões partidárias exclusivas do PCP pois nenhum outro partido tem capacidade para se aventurar por um espaço tão largo e interminável.


Procissões de professores ou de indignados cuja metafísica política nos deixa frustrados, porque não sabemos afinal quais são as causas que levam esta gente a vir para a rua atrapalhar o trânsito?


Estou a pensar numa simples folha A4, um daqueles espaços em branco que acabam por ser preenchidos por alguma mente de esquerda subitamente inspirada por uma ideia genial, agora é que vai ser. Gente inspirada, não diria pelo espírito santo, mas suficientemente motivada e disponível para reunir um pequeno grupo de apaniguados, de compinchas decididos a agitar as massas para as grandes tarefas urgentes e inadiáveis.


Tivemos hoje o último exemplo, muito interessante, desta vocação e destino do activismo português de esquerda em prol das grandes causas. O apelo dado à estampa na comunicação social de hoje, designado de Novo Rumo começa por ser um documento sociológico. É encabeçado por Mário Soares e é subscrito por alguns ilustres uns mais desconhecidos que conhecidos, tanto quanto percebi, tudo gente da área socialista, ou seja, afecta ao grande partido socrático da esquerda popular e democrática.


Como qualquer documento político que se apresente como apelo às massas, o tal de Novo Rumo tem ditos e não-ditos.


Imagino a sua factura como o resultado de uma espécie de recreio inter-geracional, com miúdos acabados de sair da faculdade e que esperam tornar-se pessoas importantes altamente consideradas, secundados por gente já mais madura e bem instalada mas que continua a cultivar o hobby de uma sociedade melhor, tudo gente tutelada por alguns seniores sobreviventes e teimosos, senadores que não desistiram de se mostrar, de dar a sua opinião. Com plenos direitos de cidadania, quem é que vai contestar isso.



Além do carácter de óbvio exercício de divertimento recreativo, o documento é uma espécie de pot pourri dirigido às crianças pagãs que frequentam aulas de catequese. Não se auguram muitas conversões à verdade e fé teológicas que são propagandeadas.


“Não podemos assistir impávidos à escalada da anarquia financeira…” proclamam os autores. Olhe que não, Dr. Mário Soares, olhe que não! Como é que vamos deixar de ser impávidos? Tem alguma solução miraculosa contra a impavidez? Olhos os olhos, diga-me lá, o que é que vai fazer para encerrar tal espectáculo? Aviões em zona de exclusão aérea?


Percebi que o que preocupa os autores do apelo é principalmente que tal anarquia coloque “em causa a sobrevivência da União Europeia”. Criticam a dita união por ter acordado “tarde para a resolução da crise monetária, financeira e política em que está mergulhada”.


Tais preocupações são-me totalmente indiferentes, estou-me completa e definitivamente nas tintas quanto ao eventual futuro da união soviética europeia. As razões de tal indiferença já aqui foram explicadas, porventura com demasiada insistência.


Ò Dr. Soares, wake up! Dos políticos europeus no activo. V. Exa. é um dos últimos que teve a oportunidade de frequentar e de conhecer, diria eu intimamente, alguns dos principais líderes europeus.


Então, Dr. Mário Soares ainda não percebeu que esta história da crise das dívidas soberanas europeias que tem servido para justificar o cerco político-financeiro aos chamados países periféricos da Europa, tudo isso não passa afinal dum complot da frau Merkel e dos seus apaniguados germano-capitalistas para levar avante o velho sonho germânico para dominar a Europa e, através da Europa, o Mundo? Ainda não percebeu isso ou anda a dormir?


Novo Rumo ou Rumo à Vitória?


Em Abril de 1964, Álvaro Cunhal escreveu para o Comité Central do PCP, o Rumo à Vitória. Dez anos antes do 25 de Abril.


Talvez o Dr. Soares, que foi compagnon de route do dr. Cunhal ganhasse alguma coisa em reler agora este texto cunhalista. Porque isso de rumo, isso é uma palavra um bocado messiânica. Indiscutivelmente era messiânica na mente do líder comunista, acabado de sair da fortaleza de Peniche.


E messiânica continua a ser porque é provavelmente o texto que melhor suporta a originalidade ideológica e política da militância PCP. Uma espécie de bíblia de prosélitos.


Messiânica porque apelava os mais crentes e os menos crentes à luta contra o fascismo.


Contra quem apela agora o Dr. Soares e seus acompanhantes? Contra o capitalismo, contra as agências de rating, contra a frau Merkel?


Leia, Dr. Soares, o Rumo à Vitória, ponha os seus jovens amigos a discutir as teses do Dr. Cunhal. O Dr. Cunhal era marxista-leninista, tinha muitas culpas no cartório. Mas tinha uma qualidade ímpar: o Dr. Cunhal não papagueava, não se limitava a dizer o que lhe vinha à cabeça, estudava, trabalhava muito.


O Dr. Álvaro Cunhal foi até aos dias de hoje o autor das análises mais certeiras acerca da sociedade portuguesa. Mas não se limitou a ser sociólogo, tirou daí consequências e conclusões nem sempre acertadas mas no essencial, em muitos casos, incontestáveis.


Relembremos algumas das coisas que, em 1964, Cunhal escreveu a propósito das consequências da adesão de Portugal à EFTA em 1960 e sobre a eventual adesão ao Mercado Comum (e aqui socorro-me da síntese do meu velho amigo XicoMelo):


— liquidação das pequenas e médias empresas, e cada vez maior domínio da economia nacional por um reduzido número de grandes grupos monopolistas;


— agravamento da exploração da classe operária, com a intensificação do trabalho, com o aumento do desemprego, com a diminuição dos salários reais;


— invasão do mercado interno por mercadorias estrangeiras com as quais as nossas indústrias não estão em condições de competir, com a consequente dependência de todo o nosso comércio externo;


— agravamento da crise da agricultura portuguesa, sujeita a medidas discriminatórias e de desfavor em relação aos produtos agrícolas, acentuando a dependência do comércio externo e piorando a situação económica geral;


— invasão renovada de capitais estrangeiros, interligando-se cada vez mais com o capital financeiro português, reforçando a dominação imperialista.


Tudo isto, claro, como sempre, em nome da concorrência e da competitividade!


Álvaro Cunhal advertia também sobre a eventual adesão ao Mercado Comum: não interessa a Portugal passar do domínio do imperialismo inglês no seio da EFTA para o domínio dos monopólios alemães-ocidentais e franceses no seio do Mercado Comum.


Dr. Mário Soares, o que está em questão não é a procura de “um novo paradigma para a UE”. A UE é chão cujas uvas foram parar principalmente aos bolsos dos ladrões e dos corruptos que afundaram Portugal.


Deixem-nos em paz, não nos chateiem, metam-se na vossa vidazinha de gente rica do norte sem sol e sem clima digno desse nome.


A União dita europeia é uma criminosa utopia ao serviço duma ditadura germânica liberticida e neo-colonialista.


Pode haver outra Europa? Pode, mas terá que ser uma Europa dos povos, sem burocratas, sem chanceleres.


Comecemos por um mercado comum dos países do sul, sem tratados de Maastrich, de Nice ou de Lisboa e sem Comissões de Bruxelas.


Um mercado comum com livre circulação de pessoas e de mercadorias, mas com tarifas aduaneiras e regulação financeira que nos protejam dos abutres europeus, asiáticos e americanos.


Uma união baseada no respeito democrático e que funcione na base da livre negociação e da imprescritível soberania de cada povo e nação europeias.


A velha esquerda não tem emenda, postas de pescada, grandes apelos às massas. Contra quem e a favor de quê?


Na praça Trahir, luta-se pela liberdade e pela democracia, contra os generais e os seus privilégios.


E em Portugal?


Temos amanhã o ritual de mais uma greve geral, vai dar em quê?


Esquerda sem emenda, cansativa e previsível.


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