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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

REPÚBLICAS


Uma semana depois do PREC 3, a palavra de ordem das comemorações republicanas foi“festejemos Portugal”. O primeiro-ministro Sócrates teve direito a muitos aplausos ali naquele sítio em frente à sede do Município de Lisboa de cuja varanda foi proclamada há 100 anos a República. Cena lamentável?

A verdade é que quem lá esteve a bater palmas foram os inevitáveis representantes da nomenklatura socialista e aliados, claro, como diria o Pinheiro de Azevedo, o povo é sereno, não entra em farsas, o dia até estava agradável, havia mais que fazer. Mas uma coisa não desculpa a outra.

É sabido que as comemorações manifestam sempre o oportunismo óbvio de se aproveitar a data para, em nome dela, se dizerem coisas que não têm nada a ver com os acontecimentos propriamente ditos, de se dizerem palavras em poses solenes para se mandarem recados de circunstância e alardear propaganda.

A sessão de descarada propaganda da praça do Município deve ter chocado todos quanto, no seu foro íntimo, comemoravam sinceramente o centenário da República e a prova de que nessa comemoração oficial prevaleceu a propaganda foi que o discurso do dia, nas suas diferentes versões, foi sempre uníssono.

Resumamos: quem não está de acordo com o orçamento PEC 3 do Sócrates e seus inevitáveis sucedâneos, quem não aceita os ultimatos alemães secundados pela Comissão Barroso, quem não se conforma com a ditadura dos que manipulam os mercados não é bom português. O que é que subentende esse discurso oficial sobre supostas dissidências? A mensagem é clara: há que começar a dar muita atenção a essa gente, aos dissidentes e seus eventuais apaniguados.

De degrau em degrau lá vamos assim chegando e ficamos cada vez mais perto daquele passo decisivo de qualquer prenúncio ou anúncio de ditadura: quem critica, quem não está de acordo, sabe-se lá, provavelmente haverá por aí alguém cúmplice ou agente de projectos terroristas.

Sabe-se por experiência o que é que pode acontecer a quem ousa não estar de acordo, a quem critica. Temos a longa história de perseguições, de autos-da-fé, de crimes. Quantos e quantos exemplos, lembremos apenas Giordano Bruno, António José da Silva, Dias Coelho, Orlando Zapata. Não deixemos a nossa memória adormecer.

Os discursos dos senhores que proferiram palavras supostamente comemorativas naquela cerimónia oficial cheia de pompa e circunstância, acerca de uma revolução com 100 anos exactos, os discursos desses senhores que por desgraça mandam neste país há demasiado tempo, esses senhores que vivem alheados do povo e o povo deles alheados, os discursos que proferiram tinham alguma coisa a ver com a revolução republicana de há 100 anos?

Uma revolução provavelmente prematura, uma revolução provavelmente demasiado citadina num país com oitenta por dento de analfabetos vivendo da terra, camponeses isolados na sua miséria, à mercê dos senhores, dos caciques, dos padres, dos funcionários do Estado, com a esmagadora maioria de mulheres coisa pouca sem quaisquer direitos, com o pequeno operariado industrial, os artesãos, os intelectuais que sonhavam um mundo novo, uma República sem senhores nem servos, muitos sonhos.


Sonhou-se muito nessa época há 100 anos, mas faltou uma mensagem para levar os sonhos destes e daqueles e daqueloutros a passar à realidade. E o sonho tornou-se um pesadelo em Maio, mês paradoxalmente florido, com os soldados descendo da capital católica até ao Terreiro do Paço, o que é que se poderia ter feito para que tal não acontecesse?


O que é que poderia ter sido feito para que uma parte da juventude não fosse apodrecer na Flandres em 1918, em La Lys? Que espécie de entendimento, de plataformas inter-classistas teria sido possível estabelecer, que alianças poderiam ter mobilizado as energias do país na senda do progresso, da justiça e da liberdade?


Comemorações com lições de história, reflexão política séria tudo isso é pedir demasiado no país apodrecido que temos. Questões inevitáveis teriam sido, por exemplo: estaremos ainda a tempo de enterrar o nosso atraso crónico, a tempo de colocar os sonhos a par da realidade, a tempo de enterrar os velhos complexos de inferioridade?


Nenhum dos políticos supostamente comemoradores teve a ousadia, a lucidez, o atrevimento de fazer a comparação óbvia que se impunha acerca do nó górdio destes 100 anos da história contemporânea de Portugal.


É que em 1910, tínhamos uma minoria muito activa, uma classe política talvez demasiado radical e utópica, demasiado apressada e irrealista. E em face do frenesim lisboeta, o que tinha mais peso eram os atrasos, os descompassos inevitáveis numa sociedade demasiado analfabeta, demasiado clerical, patriarcal, demasiado masculina.


Cem anos depois, o contraste, a reviravolta são totais, 360 graus: temos hoje uma sociedade muito avançada, moderna, muito qualificada, muito feminina e cosmopolita. E os políticos? Uma classe política provinciana, desonesta, demasiado incompetente e submissa a altos interesses. Nó górdio.

2 comentários:

Anónimo disse...

Talvez que a principal razão para comemorações muito tépidas do centenário da República tenha sido o facto da República ter sido implantada em Portugal em 1834 e não em 1910. Uma República com Rei, mas uma República assim mesmo. A mudança em 1910 foi essencialmente cosmética, sem qualquer significado profundo. As únicas melhorias foram a laicização do Estado e o impulso dado à instrução pública. O resto não valeu a pena. E tendo sido construída sobre os cadáveres de um Rei e do seu Herdeiro - violência tão repugnante como inútil - a Republica sem Rei ficou sempre algo manchada, no nosso imaginário colectivo.

Mas talvez tenha sido melhor assim. Os problemas do nosso país nada têm a ver com a existência ou não de um Rei na nossa República, mas com a necessidade de liquidar um sistema económico repugnante e injusto. É esse o problema, é essa a nossa prioridade.

Nuno Cardoso da Silva

A Toupeira disse...

(Completamente "off-topic" e por não saber mais por onde o contactar)

Soube há poucos minutos que irá jubilar-se em breve! Tenho pena de não poder assistir à sua última lição, pois já estou afastada de Lisboa desde a conclusão da licenciatura. Recordá-lo-ei para sempre como um professor extremamente paciente face aos nossos pequenos cérebros ressequidos e distraídos :)

Com os melhores cumprimentos,
Joana Costa