O marialvismo da cultura política dominante de que se falava aqui há poucos dias, está plenamente comprovado se preciso fosse. Não é uma efabulação, ele existe, em todo o seu esplendor manifestou-se no debate parlamentar sobre o chamado estado da dita nação a que pertencemos.
Pobre estado, pobre nação! A sinalética de cariz pateticamente retrógrado e tipicamente marialva utilizada pelo sr. ministro teve consequências, ou não fosse preciso salvar o que resta de aparências. Caiu em desgraça perante os seus pares, isto apesar de se considerar apto para continuar no fauteil e de se apresentar como pessoa educada. Pessoa educada, claro, não será o marialvismo apanágio do verdadeiro ideal de um verdadeiro político?
Não há qualquer novidade em tudo isso, talvez alguma coisa a fazer, uma varredela radical, sabe-se lá, trazer mais gente nova, mais mulheres, talvez sejam diferentes. Mas, quando?
Para ajudar a aliviar o stress desta miséria quotidiana da política à portuguesa que temos que suportar, felizmente aparecem às vezes algumas boas notícias.
Não sei quem é o autor da ideia, não conheço os pormenores de bastidores. Mas o projecto do Centro Cultural África. Cont, acho que é assim que se chama, é uma ideia mais do que inteligente. Não gosto do nome, mas enfim não é grave. Mas gosto muito da ideia.
Haverá, em breve, esperemos, um lugar, um sítio na encosta frente ao lugar de todas as partidas, entre o Cais da Rocha-Conde de Óbidos e Alcântara, um lugar que será consagrado à arte africana, a África. Um lugar que receberá muita gente. Um lugar que será certamente de festa, de reconhecimento e de aproximação entre iguais.
Coincidência interessante e muito significativa: David Adjaye, arquitecto escolhido para inventar o nosso futuro centro cultural africano é um arquitecto british de top, mas africano de nascimento, nasceu na Tanzânia. Tem obras construídas nos EUA e na Europa, em particular em Londres.
Em entrevista ao Ípsilon do Público de 3 de Julho, refere-se ao trabalho que fez na antiga zona industrial de Londres, onde os artistas se “apropriaram” “dos resíduos da cidade industrial como sítio ideal para trabalhar, afastando-se dos palácios, procurando uma nova informalidade”.
Isto não vos diz nada, já visitaram a LX Factory no que resta da Alcântara industrial e operária? Pergunto: qual será o futuro deste espaço de liberdade e de criatividade urbanas?
Séculos de prepotência, de indiferença e de sobranceria em relação ao continente mártir de África serão reabilitados pelo futuro centro cultural africano? Vai levar muito tempo, a dívida é grande demais. Mas poderão começar a abrir-se caminhos, poderão ser construídos sítios de fraternidade e de reconhecimento do outro, dos africanos. Em Lisboa.
Reconhecimento do outro é isso que o David Adjaye invocou para explicar o seu conceito de cosmopolitismo, cito: “Tendemos a confundir modernidade cosmopolita com modernidade tecnológica, mas a modernidade cosmopolita é sobre o compromisso com o outro”.
Poderá Lisboa ser ainda um lugar de compromisso com o outro, uma cidade atrevidamente cosmopolita?
Lisboa tem muitos compromissos para saldar.
Lisboa é a única capital europeia cujo capital principal são os vestígios, os rastos, as cicatrizes, as pedras, o ar respirado por quem levou avante uma epopeia de aproximação e de descoberta do outro.
O que é que temos feito desse capital nesta capital que vejo amorfa, vítima das manigâncias de alguns candidatos a Madoffs, engarrafada por contentores e por comboios e camiões que não nos deixam aproximar do nosso Tejo que imaginamos deslumbrante, mas que não podemos ver, o que é que vamos fazer?
Cais de Alcântara, Cais da Rocha, quantas memórias de partidas e de chegadas!
O navio chamava-se Quanza, era velho, tinha sido construído na Alemanha em 1927, estava escrito na placa. Era um barco misto, de carga e passageiros e eu lá embarquei no cais de Alcântara, miúdo, já lá vão uns anos. Como é que poderia esquecer uma tal viagem a brincar no convés, a olhar os peixes voadores e os golfinhos, quando cheguei a África, estava em Pointe Noire na antiga África Equatorial Francesa, hoje Congo-Brazzaville.
Quando olhei pela vigia, só havia negros, eram os outros? Em Angola, descobri depois que não eram os outros, dito de outra maneira, descobri que odiava o racismo, sem saber muito bem o que isso era. Provavelmente ninguém sabia, toda a gente andava muito contente. Mas o Luandino Vieira sabia muito bem o que era isso do racismo. Foi parar ao Tarrafal, embarcado no tal Quanza da minha precoce viagem.
Com o centro africano na encosta da Cruz Vermelha e do Museu de Arte Antiga vislumbrando o Tejo, Lisboa poderá ficar mais perto das suas origens. Mas ficará, por isso, mais cosmopolita?
Mais cosmopolita, com os contentores a taparem a vista do rio e com os comboios a impedirem a passagem para o lado de lá?
Mais cosmopolita, com todas as construções que têm vindo a ser feitas quase com os pés dentro de água, construções de espaços reservados para pequenas elites de burocratas ou de gente de dinheiro que se acolhe em hotéis de luxo?
O que é que resta das margens do rio que é suposto pertencer à gloriosa cidade de Lisboa, capital de todas as viagens, nessa suposta Frente Tejo, construída entre fronteiras que o cidadão comum não pode atravessar, uma espécie de muro de Berlim, de muro da vergonha?
Nós os que queremos derrubar esse muro somos os outros com quem os donos dos contentores e do combóio não querem qualquer compromisso. Que não nos deixam passear livremente na margem do rio, que nos querem impedir de admirar os belos navios que demandam Lisboa, de ver os passageiros embarcar para longe e desembarcar à nossa beira, procurando vestígios, sinais da cidade de mil histórias de descobertas, de riquezas delapidadas e de desmandos sem fim. Lisboa de todos os continentes, Lisboa cidade mais exótica de África.
Cosmopolitismo, compromisso com o outro, lembra-te Lisboa, diz a esses senhores que nos governam que se lembrem.
Rei Gugunhana, lembram-se? Morreu exilado nos Açores. Algum rasto dele na cidade de onde foram dadas as ordens, de onde partiram os navios e os soldados que o aprisionaram? Onde está a rua Rei Gugunhana?
Onde estão os sinais da cultura, da história dos índios subjugados pelos portugueses no Brasil, dos escravos que vendemos para muitos sítios? Temos vergonha desses comércios, ou estamos simplesmente distraídos?
Onde estão os compromissos com o outro na nossa memória e no nosso futuro?
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