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terça-feira, 10 de novembro de 2009

MUROS



Em 1938, na Kristallnacht de 9 de Novembro, começou a solução final nazi de extermínio dos judeus, o holocausto que custou a vida a seis milhões de homens, mulheres e crianças.


Cinquenta e um anos depois, dia por dia, ocorreu também na Alemanha outro acontecimento marcante da história do século XX, a queda do muro soviético de Berlim. Rompeu-se nesse dia a cortina de ferro que durante anos protegeu o paraíso comunista. Mas, ao contrário de Adão e Eva, os berlinenses não foram expulsos do paraíso, eles saíram de livre vontade, arrombaram com o muro com um murro de liberdade.


O que tem a ver a Kristallnacht nazi com o muro de Berlim?





Tem a ver com os caminhos da humanidade no século passado, não os caminhos da grande Humanidade, o que é uma fantasia decalcada da ideia muito alemã de Weltanschauung, ideia de totalidade, de sistema global, visão global do mundo, soluções globais. Fantasia que exclui por razões óbvias a ideia de liberdade individual, a liberdade dos humanos.


A humanidade dos humanos é outra coisa, somos todos seres diferentes, altos, baixos, mulheres, homens, judeus, crianças, asiáticos, africanos, pobres, ricos, remediados, inteligentes, menos dotados. Seres humanos com direitos, seres livres, que no passado lutaram e continuam a precisar de lutar por esses direitos.


Apesar de todas as retóricas sobre a Humanidade e os direitos humanos, o séc.XX não foi o século da liberdade, houve genocídios, chacinas, colonialismos, terríveis guerras e muitas outras infâmias e crimes.


Mas pode acontecer, sabe-se lá, que em 9 de Novembro de 1989 tenha começado um século diferente. A esperança é a última coisa a morrer.




A muralha da China começou a ser erguida cerca de 200 anos antes de Cristo, tinha uma função defensiva, mas, apesar da grandeza e da extensão das suas fortificações, que chegaram a atingir cerca de sete mil quilómetros no século XV, ela não impediu as repetidas incursões de mongóis e outros invasores. No séc. XVI, chegou-se à conclusão que não servia para nada, foi abandonada, ficou o património turístico.


Depois da queda do muro comunista, nasceram novos muros políticos e arquitectónicos. O que nos ensina a queda do muro de Berlim e o abandono da muralha da China é que esses novos muros, que ainda subsistem, serão certamente derrubados e esse derrube poderá não levar muito tempo a acontecer. No fim da história, tal como em Berlim, entrarão em cena os negociantes de recordações e de pedras da opressão.




O chamado Muro da Cisjordânia não serve apenas para separar Israel da Cisjordânia. 80% do muro mandado construir em 2002 por Sharon situa-se em território fora das fronteiras israelitas e protege colonatos construídos em terra palestiniana. Quando estiver terminada a construção, graças aos seus mais de 700 quilómetros, cerca de 10% da Cisjordânia ficará a pertencer a Israel.


Noite de Cristal e muro de Berlim têm, assim, outra conexão terrível. É que a incoerência humana em relação aos direitos fundamentais pode ultrapassar todos os limites imagináveis. Quem no seu perfeito juízo pode justificar que os judeus, vítimas do holocausto nazi, possam agora sequestrar 450.000 palestinianos numa prisão cercada por uma cortina de betão?


Gigantesco ghetto que encerra um mundo pior do que era o mundo soviético: proibidos de viajar, impedidos de trabalhar, o que resta aos palestinianos cercados? Deitar bombas?


Talvez porque tenham a consciência pesada, os americanos pouca importância têm dado ao significado, às consequências desta arquitectura totalitária israelita, que em grande parte é financiada por dólares do tio Sam.


É que eles próprios, americanos, fabricaram também um muro, mas mais ambicioso de quase mil quilómetros, sofisticado, com várias barreiras, iluminação eléctrica de alta intensidade, sensores, detectores pessoais, helicópteros armados, tudo em grande: 2.400 milhões de dólares para a construção, mais 6.500 milhões para a manutenção durante os próximos 20 anos, talvez o custo de várias muralhas da China.


Mas os custos que deveriam contar são outros, os custos em vidas humanas: cerca de 6 mil pessoas já morreram ao tentar passar a fronteira, contas que pecam talvez por defeito. Contas feitas desde 1994, ano em que o por muitos apreciado democrata presidente Bill Clinton criou o dito muro.



Ó Clinton, porque é que mandaste construir o muro? Para impedir a entrada de indesejáveis imigrantes mexicanos, responderá ele.


O que é curioso, se assim se pode dizer, é que uma grande parte do território sob vigilância de mais este muro da vergonha era pertença há muito tempo do México, o que confirma, se isso fosse necessário, que o que prevalece é sempre a lei do mais forte.


Mas as leis do futuro são incertas e podem ser simpaticamente irónicas. Antecipemos que talvez um dia aquela sofisticada fortaleza possa servir para proteger o México da entrada de indesejáveis imigrantes americanos ilegais.


Muitos políticos, mesmo os democratas, gostam de construir muros para sequestrar, para reprimir, para castigar. Mas há muitas maneiras de o fazer. No tempo do Salazar, muitos condenados pelos tribunais políticos eram desterrados para sítios com mar à volta, Timor, Açores, por exemplo.


Em Itália, Mussolini fazia o mesmo, era o chamado confino, os confinati.


Na Birmânia, a ditadura militar confinou Aung San Suu Kyi num sítio com água à volta. Separou-a do marido, separou-a dos filhos. Uma mulher que resiste pela liberdade, pela humanidade. Uma mulher que a humanidade que temos em nós deve amar.



No nosso quotidiano, quando nos levantamos e vamos pela rua, quando por acaso olhamos o céu, a luz do sol, a água que corre no Tejo e os barcos que nela se passeiam, devíamo-nos dar conta de que estamos rodeados de maravilhas que dão sentido à nossa humanidade. A verdade é que não nos extasiamos, temos pressa, não reparamos nos muros que não nos deixam ver o que há à nossa volta.

Muros que não são apenas os condóminos fechados, os lugares reservados, os sinais distintivos de classe, com os sem-abrigo lá fora, sem tecto, sem muros, sem paredes, nem janelas.


São também aqueles muros que tornam as pessoas incomunicáveis, distantes, indiferentes.


As pessoas que moram no mesmo prédio, que se cruzam todos os dias nos mesmos sítios e que não dizem bom dia, olá como está.


As pessoas que se olham de lado, que comentam entre dentes o decote mais ousado, o marido mais jeitoso, as calças mais apertadas. Talvez inveja, ou mais provavelmente muros que cada um ergue dentro de si para não ver a humanidade que está ali perto.





Robinson Crusoe e Sexta-Feira, lembram-se da história de Daniel Defoe?


É uma história de amor pela humanidade, porque nós humanos não podemos viver sozinhos, precisamos de gente à nossa volta, precisamos de comunicar com a diferença.


Estamos todos numa espécie de arca de Noé e só juntos nos podemos salvar do naufrágio de valores e derrubar os muros e fortalezas que ameaçam as nossas liberdades e a nossa humanidade.


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