Li ontem no Público uma história que me pareceu interessante, às vezes acontece. Mas será a história mesmo interessante? Não é propriamente uma história que possa servir de exemplo, mas ela é elucidativa quanto aos tempos que vão correndo, se bem que se calhar sempre foi assim. Não nos armemos em juízes porque, para juízes, já nos chegam os cromos que mandam na nossa “justiça”. Mas não é uma história banal, donc primeira razão para ela me parecer interessante.
Conta-se em poucas palavras o enredo.
Uma jovem inglesa, estudante de doutoramento, decide ir viver para Londres, é ambiciosa, claro, isso não tem mal nenhum, antes pelo contrário. Mas, ao fim de algum tempo, descobre que as coisas afinal não são bem como esperava, fica sem dinheiro, não pode pagar a renda da casa, and so on. Dilema óbvio, que fazer?
Arranjar um emprego, mas isso roubaria demasiado tempo ao seu doutoramento. Encontra então uma inesperada e improvável fonte de rendimento, why not, call girl.
Esta nova actividade, além de se revelar muito rentável, alimentará a sua inspiração em divagações literárias num blogue a que dá o cinéfilo nome de Belle de Jour, provavelmente a Catherine Deneuve terá ficado sensibilizada e o Luis Buñuel, se ainda fosse vivo o que infelizmente não é o caso, ainda mais, porque ele perdia-se mesmo por este tipo de personagens.
O blogue teve imediatamente muito sucesso, não se conhecia a identidade da(o) autora(o), agora sabe-se, a senhora saiu do armário, é uma conceituada investigadora de uma universidade inglesa. End of the history na parte que me interessa.
Porque a parte mais exemplar que me sugere este caso de uma inglesa de sucesso, liberal, sexy e pragmática são outros comércios sexuais que se vão praticando por esse mundo fora, comércios que têm a ver com miséria, morte e genocídio.
O comércio de mães de família africanas, sozinhas porque o marido provavelmente emigrou à procura de emprego, mulheres cujo último recurso para dar de comer aos filhos é ganhar alguns cobres em comércio sexual sem qualquer protecção.
Pode acontecer, é a probabilidade mais certa, que um dos seus parceiros seja alguém de passagem, um viajante que vai parando aqui e acolá, se vai infectando e, enquanto pode, vai continuando na sua transumância letal.
Um estudo feito há uns anos junto de motoristas de camiões de longo curso que faziam o percurso entre o Uganda e Moçambique mostrou que as taxas de seroprevalência destes viajantes por obrigação podia chegar aos 80%!
Bombas rolantes, camiões-caixão, quem poderá travar este vaivém?
Dados das Nações Unidas, desactualizados: em 2003, existiam em todo o mundo 37,8 milhões de infectados pelo vírus da sida, dos quais 25 milhões viviam na África subsaariana. Em 2006, 4,3 milhões de pessoas ficaram infectadas, 65% das quais eram africanas, houve 2 milhões de mortos ao sul do Saara, é claro que se trata de um genocídio. Por que não se fala dele?
Perdão, o papa falou em Março deste ano antes de iniciar a sua romaria a África, disse que isso do preservativo não resolvia o problema, antes pelo contrário! Adelante.
Também a Winnie Mandela, cuja elevada estatura moral é, como se sabe, universalmente reconhecida, vai no mesmo sentido: “enquanto mães da África do Sul, achamos que o remédio é a abstinência.”
Les grands esprits se rencontrent. O saudoso presidente Bush filho também defendia a abstinência e a fidelidade para combater o flagelo e, coerente com o seu ponto de vista, arregimentou um bando de fanáticos religiosos que foram pregar a boa nova para África. Comércio vergonhoso este, incomparavelmente mais vergonhoso que qualquer comércio sexual: os generosos dólares do plano PEPFAR (não sei o que é que isso quer dizer) eram recusados a quem andasse a defender preservativo. No safe sex, no sex at all!
Nos países chamados desenvolvidos, a sida evoluiu para doença crónica, tratável, graças às terapêuticas de combinação de medicamentos retrovirais.
Em África, não há prevenção, não há retrovirais gratuitos, a sida continua a ser uma doença sócio-económica que alastra, se alimenta da ignorância, da passividade criminosa dos governos, se alimenta de muitas misérias, da miséria que conduz muitas mulheres indefesas à prostituição e a comportamentos de risco, ao negócio sexual que faz ao mesmo tempo vítimas e carrascos neste genocídio silencioso de que não se fala.
No news, good news é um aforisma que não se aplica aqui. A sida já não é notícia, isso é uma péssima notícia.
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