No tempo do Estado Novo, a palavra que melhor caracterizava esse triste regime, a palavra que toda a gente conhecia era a palavra situação. Para quem sabia que fulano de tal era da situação, essa pertença tinha um forte e óbvio significado. Toda a gente sabia o que é que isso queria dizer, e tudo isto apesar de o país ser maioritariamente analfabeto e apolítico.
Sabia-se que quem estava na situação era gente que tinha algum poder, que isso lhe dava vantagens, grandes, pequenas ou enormes. Podia consistir apenas em ter acesso a um emprego de contínuo ou de mulher-a-dias numa repartição, podia ser uma pequena protecção, um favor, uma licença para uma mercearia, um café, uma dispensa da licença de isqueiro ou de outra coisa qualquer.
As vantagens substanciais, essas tinham naturalmente a ver com grandes negócios e com grandes privilégios. Mas tudo funcionava pelo melhor, o sistema era completamente interclassista.
Na sua luta pela sobrevivência, as pessoas comuns acomodavam-se com os poderes da situação, embora em privado contassem histórias, rumores ou anedotas nada favoráveis aos situacionistas. Mas o imaginário popular curvou-se sempre respeitosamente perante aquele vasto território subterrâneo de cumplicidades e vassalagens invariavelmente apoiadas pelas competentes autoridades oficiais.
Durante quase 50 anos, as coisas funcionaram assim. Dir-se-á, são histórias tristes mas são histórias antigas, valerá a pena perder tempo com isso?
Leio os jornais, leio as notícias, leio os comentários, vejo telejornais, ouço os comentadores na televisão e percebo que há um nexo entre quase tudo o que leio, vejo e ouço. Percebo também que esse nexo tem a ver com o velho situacionismo salazarista.
Não vou dar exemplos, eles saltam à vista.
Jornais e telejornais, as cenas repetem-se invariavelmente. Há o deficit, há o orçamento, há o tango Sócrates-Passos, há os bancos, há as agências de rating, o euro, a Merkel, a Comissão de Bruxelas, o Sócrates, o Cavaco.
Às vezes, também se fala de corrupção, de desemprego, de austeridade, de pobreza, and so on, também da ausência de futuro para os jovens. Mas embora tudo isso exista, tudo isso é triste, tudo isso é fado.
Nas agendas jornalísticas, há também breves referências à campanha para as eleições de 23 de Janeiro, nas quais se sublinha principalmente a inevitável reeleição do candidato-presidente. Mas não se percebe se os autores dessas predições estão verdadeiramente convictos que essa reeleição impedirá o descalabro que se anuncia para 2011 e anos seguintes.
No meio das agendas, dos discursos, dos ditos e dos não-ditos, da propaganda e da contra-propaganda, há as tretas da democracia, o governo, o parlamento, a opinião pública, o presidente da república, tudo intocável!
No cafarnaum de todos estes consensos mediáticos, há uma questão que mereceria ser colocada: será que os faiseurs d’opinion, os jornais e a televisão, admitem que possa haver outras alternativas, será que faria sentido dar a voz a outros protagonistas, a outros pensamentos, porventura a algumas heterodoxias?
Mas que raio de questão, dirão os respeitáveis editores. Para os senhores e senhoras que todos os dias nos debitam as palavras que nos ensurdecem, existe uma única, verdadeira e óbvia incógnita que é a seguinte: no bloco central, quem é que vai mandar nos próximos anos? Eis a suprema incerteza que domina esses esclarecidos espíritos e preocupa as suas preocupadas consciências.
Muitos empregos, muitas assessorias, muitos negócios, muito dinheiro e muitos privilégios estarão em jogo dependendo de quem sejam os donos da futura situação.
É aí que entram em cena os faiseurs d’opinion. Não apenas aqueles que escrevem e que opinam, mas principalmente os que pagam e os que conspiram, os donos da situação, os fazedores de situacionistas.
O povo vai lendo, o povo vai ouvindo, o povo é sereno, já dizia o saudoso Pinheiro de Azevedo. Valha-nos isso, nunca se sabe.
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