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terça-feira, 23 de junho de 2009

HUMILDADES


Em alguns países europeus, o debate político tem vindo a incidir cada vez mais sobre as lições que é preciso tirar da crise, com vista a melhorar as sociedades do futuro. O facto de o pós-crise estar na ordem do dia nesses países significa que existe uma enorme pressão social que obriga os governos, na sua maioria de direita, a terem que equacionar planos e orientações que teoricamente poderiam e deveriam ser protagonizados por governos de esquerda. Grande novidade, portanto.

Em Portugal pouco se fala do pós-crise. Aqui, a agenda política continua a ser pontuada pelas mesmas velhas questões de há vários anos, tgv, aeroporto, auto-estradas, avaliação dos professores, educação, segurança, justiça. Velhas questões que muito provavelmente continuarão a ser discutidas durante a próxima década.

As únicas mudanças no nosso debate político, se a isso se pode chamar debate, poderão, como de costume, vir a ser novas tricas e comérages politiqueiras à volta de novos personagens que continuamente vão emergindo na cena pública até ao seu rápido esquecimento.

A última comérage política, que durante uma semana fez salivar a gente do milieu, comentadores, repórteres, políticos, foi o coelho de nome humildade, tirado da cartola pelo ainda primeiro-ministro Sócrates.

Infelizmente, a humildade inerente à dúvida do Sócrates ateniense não tem a ver com esse passe de mágica, porque se assim fosse, poderia ainda haver algumas razões de esperança na política.

Em tempos, o primeiro-ministro Cavaco Silva foi exemplo assumido de denegação da dúvida ateniense e por vias do facto um bom exemplo da falta de humildade dos políticos à portuguesa: “raramente tenho dúvidas e nunca me engano”, creio que foram estas as suas palavras no auge do seu poder. Apesar de esmagador, tal pensamento não ultrapassa, no entanto, o alcance do “sou um animal feroz” do ainda primeiro-ministro Sócrates. Mas ambos estão em perfeita sintonia.

A verdade nua e crua é que o combate político em Portugal, que me lembre, não tem tido por costume ser principalmente um combate em nome de ideias. Porque somos um país marialva, quem gritar mais alto, quem parecer mais machão, normalmente deve ganhar. É um princípio que inspira muita gente que tem poder. Não vou dar exemplos, teria que ser uma lista muito longa, de facto o Sócrates de S. Bento não está sozinho.

Mas interessa reflectir sobre as consequências da falta de humildade dos políticos à portuguesa.

Ser humilde em política significaria em primeiro lugar saber ouvir, em vez de se assobiar para o lado sempre que se colocam problemas. Exemplo óbvio: soube a Ministra da Educação ouvir os professores que manifestaram na avenida da Liberdade?

Pergunta óbvia: como é que a socióloga Maria de Lourdes Rodrigues que, enquanto Ministra da Educação, aprovou nos primeiros tempos do seu mandato algumas medidas corajosas e inteligentes, se lançou depois numa guerra de trincheiras contra os professores, invocando nessa guerra argumentos puramente administrativos e burocráticos, os quais, não sendo nem políticos nem sociológicos, lhe deveriam ser estranhos?

Nova pergunta óbvia: será que a política e o poder corrompem, transtornam o espírito de quem os exerce?

Ou será que o simples exercício da política não transtorna apenas quem está no poder?

Infelizmente, existem poucos políticos verdadeiramente livres, penso que a maioria dos nossos políticos limitam-se a obedecer à lógica e às ordens dos seus partidos, o interesse público é apenas um detalhe no meio das suas divagações de circunstância. São políticos assalariados e, por isso, para merecerem o emprego, têm que defender acima de tudo a linha e os interesses do partido. Alguma vez viram um político de esquerda concordar em público com ideias ou propostas de um político de direita ou vice-versa?

Ser humilde em política deveria, pois, também significar que os políticos se ouvem atentamente e com respeito uns aos outros. Por que razão não conseguem os que estão no poder e os que estão na oposição debater entre si de maneira frontal, inteligente e civilizada acerca das melhores soluções para sair da actual crise e preservar um futuro melhor? Será que isso iria prejudicar o país?




Humildade significaria também que os políticos sabem respeitar os cidadãos que os elegeram e que, sendo o seu poder transitório, um poder delegado pelo povo, não se podem arrogar em detentores únicos desse poder.

Na realidade, é o marialvismo da cultura política dominante que explica o corte absoluto que separa os políticos dos cidadãos e os cidadãos da política. Temos, assim, uma sociedade amorfa, uma sociedade em vias de asfixia, onde, por exemplo, os jovens têm cada vez menos oportunidades de libertar a sua criatividade em projectos de futuro. E assim, vamos perdendo a nossa identidade e vão aumentando as incertezas e os perigos.


O actual contexto de crise deveria estimular a procura de novas soluções, soluções mesmo novas, deveria promover a iniciativa e a criatividade dos cidadãos. Infelizmente, entre nós a política tem servido principalmente para fazer favores aos poderosos e aos grandes grupos económicos e financeiros.

Em defesa do interesse público, mandaria a humildade política, que, em vez de se distribuírem milhares de milhões por esses grupos, se utilizassem os dinheiros e a capacidade do Estado para promover a actividade de grupos de cidadãos trabalhadores que apresentem projectos viáveis e socialmente úteis de empresas ou de cooperativas. Projectos que, por exemplo, se substituíssem a empresas falidas ou deslocalizadas.

Mandaria a humildade que os políticos soubessem partilhar os seus poderes, abrindo espaço à intervenção da sociedade na gestão do interesse público e promovendo e defendendo os direitos, a autonomia e a iniciativa individuais.
Mandaria a humildade que os governos, os legisladores, os juízes e as polícias fossem capazes e estivessem interessados em defender os mais vulneráveis contra as violências, contra a sobrexploração, contra as injustiças.
Mandaria a humildade política que os políticos de hoje estivessem honestamente interessados em contribuir para que se construa uma verdadeira democracia e uma sociedade justa e sem descriminações.
O problema, a dificuldade de tudo isto é que essa coisa da humildade política é apenas uma fantasia de verão, quando acabarem as eleições não se fala mais nisso.