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quinta-feira, 4 de junho de 2009

OS RUSSOS


Desde há alguns dias tem sido sempre assim, a televisão com as suas entrevistas e reportagens, a pequena Alexandra que nos entra pela casa dentro com a mãe dita biológica, russa e problemática.

A história é sobejamente conhecida, já se conhecem os detalhes, mas vale a pena sublinhar dois.

No meio daquele cafarnaum triste, pobre e visivelmente deplorável de uma família pós-União Soviética, aparece uma flor aparentemente brilhante e intacta, talvez vinda de outro mundo, a Valéria irmã da Alexandra.

O outro pormenor, que não me atrevo a chamar de sórdido, com a justiça on ne sait jamais, é de extracção portuguesa, o ilustre juiz que mandou a criança para aquele degredo. São todos ilustres ou meritíssimos esses juízes, não se sabe bem porquê, que especial mérito terão as decisões de muitos desses senhores, decisões por vezes, como é o caso, assustadoras? O que pode fazer um indefeso cidadão perante estes eméritos agentes da lei para se defender? Karaté?

Este sr. Juíz, do alto do seu altíssimo poder discricionário, não se sentiu na obrigação de tentar conhecer minimamente o que é a Rússia para onde mandou a Alexandra. Quero dizer a Rússia mental, social. A Rússia, não apenas a actual do ex-KGB Putin, mas também a Rússia soviética de Breznev e as suas antecessoras, a Rússia de Stalin e dos czares antepassados de Nicolau II. A Rússia do gulag, a Rússia dos servos da gleba, provavelmente a Rússia de hoje dos muitos assalariados das máfias. Podemos recuar muito no tempo, infelizmente na história deste país meio-europeu, meio-asiático, encontramos sempre sinais fortes e intoleráveis de pobreza e da opressão, vodka e tristeza da alma russa.

E também glória e grandeza dos criadores e dos artistas e dos heróis anónimos quantas vezes sacrificados. Valha-nos isso.

O sr. meritíssimo podia talvez ter-se dado ao trabalho de ler um livro dum escritor russo, um daqueles e foram muitos que testemunharam os sofrimentos do seu povo ao longo do tempo e que, pelo génio dos seus testemunhos, brilham para sempre no Olimpo dos grandes artistas, o Puskin ou o Gogol ou o Dostoievsky, ou o Tolstoi ou o Turgueniev. Ou o Solnyetsine? Ou o Dr. Jivago do Pasternak? Talvez pudesse ter feito um pequeno esforço antes de tomar uma decisão tão grave sobre uma criança indefesa, indefesa note bem sr. juiz, que está a começar a sua vida.

Se não gosta de ler, meritíssimo, talvez não se importasse de ver um filme sobre a Rússia. Agora, com a Internet e com os DVD’s é tão fácil.

Mas, quem sou eu para aconselhar um emérito juiz? Não me atrevo a tal, mas, quando penso em todos este descalabro, o meu espírito não pode deixar de percorrer algumas das mais belas recordações de momentos cinematográficos que vivi graças a grandes artistas russos.


Percorrendo algumas dessas recordações encontro duas histórias filiais russas, que vale a pena meditar.

Andrei Rubliov (ou Rublev, conforme as transcrições), filme de Andrei Tarkovsky, terminado em 1966, exibido pela primeira vez em Cannes extra-concurso em 1969 e estreado na URSS apenas em 1971, reconstitui a vida daquele grande pintor de ícones religiosos, entre 1400 e 1423. A vida do monge é pretexto para Tarkovsky retratar a relação entre o artista, a criação artística e o mundo. O mundo russo medieval, mundo de violências e destruições. A angústia e a impotência do artista que a certa altura, face a tanta destruição, faz voto de silêncio e deixa de pintar.

No episódio do Sino, o meu preferido e um dos nove episódios em que está organizado o filme, acontece a primeira história filial que me veio à memória.
Numa aldeia onde toda a gente morreu, aparecem os soldados do Grão-Duque à procura de um artesão para fundir um sino para a catedral que tinha, aliás, sido incendiada por ordens do próprio Grão-Duque. Mas na aldeia só resta um habitante, um jovem adolescente. Quais são as suas hipóteses de sobreviver? Nenhumas. Mas o seu instinto de vida é mais forte e mais rápido, consegue convencer os soldados que o pai dele, antes de morrer, lhe transmitiu o segredo da construção do sino.

A terrível luta pela vida que enfrenta o jovem no seu desafio para cumprir a encomenda arma-o para superar todas as dificuldades. Consegue fabricar o sino que toca pela primeira vez um profundo e distante som perante o Grão-Duque e a sua corte.
Rublev vai acompanhando e assistindo interessado à epopeia criadora do jovem atrevido. No fim, o criador de sinos chora nos braços do pintor de ícones, confessando que o pai dele não lhe tinha confiado nenhum segredo. Rublev quebra o silêncio e volta a pintar. O jovem artesão vence o seu desafio, recebe reconhecimento e ao mesmo tempo encontra alguém que o admira, o ama e protege, que o apoia, um pai?

Segunda história filial russa, A Mãe e o Filho de Aleksandr Sokurov, filme de 1997.

Neste filme vale a atmosfera quase onírica do que se passa no quarto da mãe e a paisagem à volta. A acção é muito reduzida, o filho que cuida e assiste em todos os momentos a mãe que agoniza na sua cama. A paisagem onde o filho nos seus braços transporta a mãe. O amor entre o filho e a mãe. Oui, l’amour jusqu’au bout. Ça existe, non, Monsieur le Juge?



1 comentário:

Anónimo disse...

...É que os juizes, estes juizes que temos representam muito mais a sociedade que foi crescendo à nossa volta - sem praticmente damos por isso - , a sociedade governada pela teologia do mercado do que a Justiça. Os juizes de hoje não leiem, competem uns com os outros e as suas decisões estão incritas no seu próprio campeonato, o que nos rouba toda a esperança de um dia termos justiça na Nossa Terra.