Há uns tempos, ir ao cinema também era uma questão de rituais, a matinée, a soirée, ir ao cinema era muito social. Mas, rituais à parte, o que perdurava era principalmente o aconchego estético, os momentos de verdadeira arte, olhar filmes era passear no Louvre e parar embasbacado frente à Vitória de Samotrácia.
Os ecrãs enormes, imponentes, os dourados da sala, era como se estivéssemos em Versalhes assistindo a um espectáculo de Jean-Baptiste Lully para o Rei Sol.
As poltronas, a plateia, o galinheiro e os camarotes, as senhoras devidamente enfeitadas, toda a gente se olhava nos intervalos. Ir ao cinema dantes era praticamente a mesma coisa que ir hoje ao S. Carlos, ali no Chiado, quando o aparelho de estado, a Galp, a PT, a EDP, o TagusPark saem eufóricos para a rua no intervalo e entre idas e vindas se vão mirando uns aos outros. Mas era mais democrático, lá isso era, durava o tempo de uma convivência pluralista com os mirones de olho nos malandros, nas senhoras e nos maridos delas.
Nesses tempos do cinema obra d’arte, os ecrãs ainda não tinham sido reduzidos à dimensão caseira dos LCD’s. Eram ecrãs que nos impunham respeito, ali ficávamos a olhar, bem sentados, era impressionante.
Os cinemas, com as suas salas mais ou menos douradas ou mais ou menos manhosas, eram nesses tempos as jóias preciosas de qualquer terra com um mínimo de ambição, o lugar crucial do social e dos sonhos. Lá estavam as classes sociais bem arrumadas, quase como na missa, se bem que não fosse mulheres de um lado, homens do outro, tinha mais a ver com a arrumação das famílias. As mais aburguesadas e assenhoradas nos seus camarotes, as famílias médias na plateia e o povo no galinheiro com o cu sentado em bancadas de pau.
Belo interclacissismo era este, o do espectáculo da convivência de uma soirée cinematográfica.
Mas o mais importante era sempre o ecrã, as imagens em movimento, não havia pipocas, havia pevides. E a televisão já era uma chatice.
Lembram-se da Lisboa do tempo do Monumental, ali no Saldanha, do Império na alameda, and so on?
O Monumental tinha a Laura Alves, o Paulo Renato, já não me lembro dos outros nomes, os espectáculos do Vasco Morgado. E tinha também o seu impressionante ecrã para se ver West Side Story com a música do Leonard Bernstein e a Nathalie Woode, o My Fair Lady do George Cukor com a Audrey Hepburn, o Lawrence da Arábia com as dunas e o Dr. Jivago do David Lean, ambos com a música do Maurice Jarre.
Haverá algum LCD capaz de transmitir tamanha beleza e emoção ?
O Monumental agora é um pequeno e descartável centro comercial, igual a centenas de outros por aí fora. Será que vos excita subir e descer as escadas mecânicas, comer um hambúrguer à pressa, comprar uma camisinha, olhar as montras, consultar o saldo no multi-banco? E, no meio desse quotidiano avassalador de suspense, o que é feito da Audrey Hepburn?
Não seria melhor para todos, mesmo para os donos daquilo, continuar a ter ali uma bela sala de espectáculos, teatro, música, a magia do cinema no centro da cidade?
Capitalistas de merda é o que é, perderam o sentido da história, só sabem destruir, já não conseguem inventar nada que vá mais além, o lucro rápido é a única coisa que lhes interessa. Handicap: como não sabem prever o futuro, também acabarão por sofrer as consequências da sua arrogância destruidora.
As salas de cinema de hoje com pipocas em hiper-centros comerciais é como uma história à imagem do Sócrates e do seu ministro das finanças. Da sua falta de jeito para fazer contas. Não sabem prever, não percebem nada de economia nem de história, nem de letras, nem de cinema. Nem de arquitectura. Como não sabem népia, vão dando saltos em frente, no desconhecido.
Provavelmente, será a história do deficit e do PEC que os vai pôr definitivamente doidos, ou seja inimputáveis, descartáveis. Mas, como não se pode voltar atrás no tempo, ficamos com um problema bicudo: quem é que vai pagar os desvarios, a ignorância saloia, os desplantes desta malta?
O Johnny Guitar?
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