O doutor Cavaco foi à TV dizer que os portugueses deviam ter vergonha pelo facto de haver outros portugueses que estão a passar fome.
Registei a comunicação, confesso que quase me comoveu.
Mas, ponderando as doutas palavras, confrontando os meus botões, cheguei a uma conclusão inevitável: nem sempre o que parece é. Por outras palavras: não inventei a pólvora.
Primo, provavelmente, muitos desses famintos a que o sr. presidente se estaria a referir nem serão assim tão portugueses, simplesmente tiveram o azar de vir cá parar, vieram para trabalhar, muitos nem sequer terão dinheiro, nem casa, nem país para onde voltar.
Secundo, quando falou de fome, o doutor Cavaco provavelmente estaria a referir-se àquela história das bandeiras negras contra a fome, que apareciam na televisão. Mas isso já foi há bastantes anos, aconteceu nos idos de 1990 quando o agora presidente-candidato era o todo poderoso primeiro-ministro.
Lembro-me que na altura ele não gostou nada nem das tais bandeiras, nem de que se falasse publicamente que havia portugueses com fome. Na sua autorizada opinião, os culpados de tudo isso eram as forças do bloqueio.
Tertio, o que é que mudou então desde essa época das bandeiras negras?
Explique lá doutor Cavaco essa sua conversão, por que é que agora se comove tão facilmente por causa dos desgraçados que não têm que comer, que não têm um tecto, que não têm futuro, que estão perdidos?
Pesa-lhe alguma coisa na sua consciência, doutor Cavaco?
Sente-se envergonhado?
Esta cena de televisão, o discurso eleitoral para povo ver fez-me pensar em Molière, fez-me pensar no Tartuffe, para ser mais preciso.
A hipocrisia política não é muito diferente da hipocrisia do quotidiano, da hipocrisia nas relações humanas. Mas ela é certamente mais sofisticada.
Além da falsa ingenuidade, a hipocrisia dos políticos de sucesso joga com a falta de memória e as desatenções da gente comum.
O pessoal vê televisão, ouve umas coisas aqui, vê outras ali, repara nisto e naquilo, mas não se dá conta, vai esquecendo, a luta pela sobrevivência está cada vez mais difícil. Há outras coisas em que pensar, o emprego, as contas da casa, os filhos, as doenças, o orçamento do fim do mês, o patrão, o mundo está cada vez mais a ferro e fogo como diria a Fred Vargas. No meio de tudo isso, a memória vai-se perdendo, o sentido crítico é um luxo exorbitante.
O povo que vota tem a memória curta, comove-se facilmente, o povo gosta de ver os políticos pavonearem-se na TV. Qu’est-ce qu’on peut faire?
2 comentários:
Certamente para a curta memória contribui a absorção deficitária de nutrientes durante a infância (que muitos a tiveram difícil, é verdade).
Não me espanta que, daqui a dez anos, os filhos de beneficiários do RSI alimentados com um pacote de batatas fritas e um bollycao (para o almoço) por puro desleixo parental se comovam com discursos semelhantes. Não terão a capacidade de entender que a fome que passaram (e que se poderá passar) se devia à irresponsabilidade dos pais, mais do que à falta de consciência e de apoio dessa coisa que toda a gente acha que sabe o que é: a sociedade.
Estamos, mais uma vez, perante casos graves de Pobreza de Espírito. Deviam experimentar imputar-lhe as culpas primeiro, deixavamo-nos de tanta hiprocrisiazinha...
a fome sempre esteve na moda
é melhor falar dela
que tê-la
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