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terça-feira, 6 de março de 2012

ANDRÓIDES, CAPITALISMO E MIGRANTES DO FUTURO





O Público evocou hoje o grande escritor americano Philip K. Dick, achei que era uma óptima ideia, se bem que deteste o novo modelo arrumadinho e piroso que a direcção do jornal resolveu inventar, só para chatear os fiéis leitores.


Os jornais nunca deviam mudar nem de estilo, nem de aspecto, nem de princípios. À nossa volta já há demasiadas mudanças, misérias e tragédias. O tempo de duração dum jornal credível e igual a si próprio é no mínimo igual à idade do Manoel de Oliveira.


Pelo que consegui perceber, a ideia do artigo subscrito por um professor da Universidade Nova de Lisboa que, pelo que me foi dado conhecer, se encontra “à frente de seminários como Cibercultura, Cultura Pop e Modos de Ficção” - devem ser extraordinários esses lugares de encontro das jovens élites - , é alimentada em dois pretextos.


Um pretexto implícito e, que só por si, justificaria qualquer artigo honesto e outro cuja oportunidade nem me parece implícita nem explícita, mas que se aparenta notoriamente com a divulgação de um projecto editorial para publicação de quase 1000 páginas de manuscritos do autor tão prestimosamente evocado.


O pretexto implícito, tem a ver com o facto de que o aniversário da morte de Philip passou na última sexta-feira, 2 de Março, por maléfica coincidência, dia da assinatura do nefasto tratado alemão anti-défice.


Se o Público tivesse revisores de texto bem pagos e muito atentos, certamente não permitiria que escapassem erros e óbvias contradições de datas e tempos de vida como aqueles que aparecem logo no início do texto.


No subtítulo do artigo afirma-se à cabeça que Philip K. Dick morreu há“três décadas”, o que, aliás é verdade. Só que, logo a seguir, no início do corpo do texto, a morte do célebre americano autor é localizada “a 2 de Março de 1972”.


Ora, distintos jornalistas, professores universitários, revisores de texto, quem quer que seja, 1972 foi há 40 anos, estão a tirar dez anos de vida ao homem. Não aprenderam a tabuada, claro, ou então andaram na mesma escola do Alberto João da Madeira, especialista em contas de sumir.


Façam um esforço, sejam exactos, o que os leitores exigem dos jornais que compram no quiosque é que os jornais e os jornalistas não brinquem com coisas sérias. É verdade que o Philip teve uma vida muito complicada, morreu demasiado jovem, mas tenham respeito, não lhe roubem dez anos de vida!


O pretexto explícito para esta evocação do Público é completamente obscuro e incompreensível, está tudo mal explicado. Não vale a pena perder tempo com isso. Aparentemente terá a ver com a publicação realizada em Novembro passado nos USA duma coisa chamada The Exegesis of Philip K. Dick, apresentada pelo autor do artigo como sendo “944 páginas ilustradas a partir dos milhares de páginas manuscritas a que o escritor chamou Exegesis”. Adelante, como diria Dom Quijote.


Não conheço nada das tais 944 páginas, para mim o K. é The Man in the High Castle, que, entre coisas muito conhecidas, escreveu Do Androids Dream of Electric Sheep.


The Man in the High Castle parece ser um livro de ficção científica, é assim que costuma ser apresentado. Ficção científica sem naves espaciais. A história passa-se num mundo que ficou felizmente para trás, um mundo completamente inventado porque nem a Alemanha nem o Japão ganharam a guerra.


Philip K. Dick viveu principalmente na Califórnia, durante a época dourada dos anos hippies e durante os seus curtos cinquenta anos de vida, escreveu e escreveu, não parou de escrever. Inventou qualquer coisa completamente nova que pode ser catalogada como ficção científica de inspiração político-filosófico-parapsicológica and so on.


Como é de regra, o homem só passou a famoso quando se foi desta vida. Foi em 1982, quando saiu o filme Blade Runner. A última legenda do genérico deste filme é, e nem podia deixar de ser, "em memória de Philip K. Dick". Porquê em memória de...? É que Blade Runner é um filme inventado a partir do livro Do Androids Dream of Electric Sheep, escrito pelo Philip em 1966.


Curioso título esse. Cenário muito pouco científico, ficção sim mas principamente poética, com polícias e marginais, faz-me pensar nas histórias de malandros do Brecht e do Kurt Weil. Mas nesta história, os marginais são replicantes, ou seja, andróides criados pela engenharia genética, são iguais aos seres humanos, de carne e osso como nós, mas têm uma duração de vida muito mais curta. That's the question, they not accept it.


Parecem humanos, mas são escravos. Parecem humanos, mas são desterrados para planetas onde nenhum ser humano consegue trabalhar e, muito menos, sobreviver.





Do Androids Dream of Electric Sheep é sobre o fascínio de viver, sobre o fascínio de qualquer ser vivo sobre o que é isso de viver.


Mas é principalmente o testemunho de K. Dick sobre o capitalismo. É a versão actualizada do Capital de Marx. É a versão actualizada do futuro de duas categorias de futuras gerações de humanos: os que gozarão do privilégio de nascer e de terem uma vida longa e os que serão fabricados em série para servir o mercado de trabalho.


Há duzentos anos, os humanos eram praticamente andróides, eram andrajosos e miseráveis, viviam em média menos de trinta anos e raramente se revoltavam. Agora vivem mais de oitenta, daqui a um século talvez mais de noventa. Que fazer com tanto tempo e com tão poucas oportunidades de vida?


Alguns, muito poucos, terão o extraordinário privilégio de viajar entre o norte e o sul, entre o leste e o oeste, admirar o por-do sol, as praias, o mar, as montanhas, o museu do Louvre, a Capela Sistina, a Lagoa das Sete Cidades.



A maioria, o grande exército dos dependentes das agências de rating, esses, não têm por onde escapar, vão ter que emigrar, vão dormir dentro de carcaças de carros, dentro de ruínas de cidades sírias, ruínas das Homs do futuro.


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