

As viagens são a alegria do moleiro, as viagens! A água dá-nos o exemplo das viagens, a água! Que não descansa noite e dia, Que só pensa em correr, a água! Mestre moleiro, bela moleira, Sede gentis, deixai-me partir e viajar. (Adaptação livre de um dos poemas de Wilhelm Muller em que que se inspirou Franz Schubert para compor o ciclo de lieder A Bela Moleira)
Na Argentina, houve um tipo chamado Carlos Menem, foi presidente da República, a dita república faliu. A república argentina estava alinhada pelo dólar mas isso não a impediu de falir, antes pelo contrário. Quem sofreu as consequências? Os mesmos do costume, claro, o capitalismo flutua sempre.
Há dois anos, muitos alarves que têm mandado neste país, inebriados na sua euforia pan-europeia, afirmavam arrogantes que Portugal não podia falir, é que Portugal estava no euro. O dólar não valeu de nada aos argentinos, antes pelo contrário, de que é que nos vai valer o euro? Para comprar uma coroa de flores?
Estamos apanhados no meio de uma guerra global, a guerra dos câmbios, e não somos apenas o terceiro elo mais fraco do euro. A situação actual em que estamos entalados é muito mais complicada do que isso, é que temos a enormíssima responsabilidade de defender o quarto elo mais fraco do euro que, segundo a comunicação social internacional é, imaginem, a Espanha, antiga potência imperial na Europa e além-mar. Mas isso já é sabido há muito tempo. Para que tem servido, então, ter um governo e um presidente da República?
Em 1983, batemos à porta do FMI, foi na época em que o Dr. Soares ainda não tinha aprendido a distinguir entre quatrocentos mil e quatro milhões de dólares. Na sua cabeça, a diferença era pequena.
Hoje, o sr. Juncker, ou lá com é que ele se chama, admitiu com conspícuo sorriso, que Portugal ia precisar de uma ajuda de 70 mil milhões de euros. O homem manda nas finanças da EU, preside ao eurogrupo. Deve saber do que está a falar. Ou talvez não, é que estes tipos das finanças fazem-me sempre pensar naqueles serviços de polícia que vão acumulando imensas informações sobre estes e aqueles que julgam mais ou menos perigosos e que, quando as coisas começam a aquecer, não conseguem perceber nada do que está a acontecer.
O Sócrates vai-se embora, bon voyage, o PS vai fazer a sua merecida cura de oposição. Já chega, descansem, não chateiem mais, era bom que também levassem convosco o Cavaco.
Baralhemos, então, para dar de novo as cartas. Cartas novas, entenda-se, sem trafulhices.
Pensemos num programa mínimo, quero dizer máximo, neste momento do que precisamos é saber como agir para restituir dignidade a este país.
Entre os partidos políticos que temos, de direita ou de esquerda, existe gente competente, gente séria. Terão poder para mudar alguma coisa, poderão trabalhar em conjunto, apesar das suas respeitáveis diferenças?
Em Abril de 74, tivemos uma revolução contra um regime anacrónico.
Trinta e sete anos depois, o desafio é mais difícil, porque tem que se lutar, num contexto internacional totalmente adverso, por um país com futuro e com dignidade, um país livre, soberano e solidário.
Comecemos por concordar num compromisso histórico entre cidadãos quaisquer que sejam as suas opiniões ou preferências. Um compromisso solidário para preservar um espaço onde se possa viver em liberdade sem senhores vindos de outras partes. Liberdade, igualdade, fraternidade, é isso, voltamos sempre ao mesmo.
O que o Passos queria dizer nesse anúncio era que ele se retirava, estava farto, retirava-se do papel em que era suposto ser ele que tinha que transportar o Sócrates, empoleirado nos seus ombros, vestido de primeiro-ministro que conduzia convictamente eufórico o país à falência.
Passos Coelho, ninguém o obrigou a entrar na peça, entrou voluntária e conscientemente nessa cena em que aparece a explicar que tem que dar um crédito de confiança ao seu principal opositor, o Sócrates. Assumiu convictamente esse papel? Terá sido mais por receio e por falta de coragem para voos mais altos.
O Sócrates, desde quando o personagem começou a emergir, fez-me sempre pensar, salvaguardadas as devidas proporções históricas e políticas, naquele ilustre político americano que, além de ilustre, chegou a ser muito poderoso mas que acabou mal, o presidente dos USA Richard Nixon. Dirty Richard, dirty Sócrates, gente da mesma cepa, voilà.
Ao cabo da história destes terrivelmente longos anos socráticos, que culmina com o episódio de hoje da demissão do dirty Sócrates, chegámos ao grau zero da política. Ao grau zero das portas para o fim do mundo.
Não por causa da demissão, que é muito e demasiado tardia, mas por causa do que antecede e do que virá depois.
No tempo do Salazar, o povo murmurava, não podia nem era capaz de falar abertamente, o povo murmurava, no íntimo de cada um, não estava contente com a sua sorte, com a sua vidinha, a fome, a falta de alimentos, as dificuldades do quotidiano. Mas a resignação cristã, aquela ideologia dos pobrezinhos, enchia-lhe a alma de compreensão, algum fatalismo também. E o povo pensava o senhor presidente do conselho não tinha a culpa, ele era uma pessoa honesta.
No estado a que isto chegou, pode estar a voltar essa fatídica resignação, a compaixão que às vezes se exprime numa espécie de solidariedade que é muito católica e que costuma absolver sobretudo os grandes culpados, os bandidos e outros salteadores.
E assim podemos estar a voltar a esse sentimento de grande desculpa nacional, a uma desculpa descomunal e muita gente hoje por esse país fora poderá começar a afinar por um mesmo pensamento, a culpa não é do Sócrates, o homem tem sido muito atacado, mas, sabe-se lá, se calhar até é honesto.
Tudo depende do conceito, desonestidade é um campo muito aberto, tem demasiado a ver com moral e a moral nem sempre é honesta.
Político honesto não é certamente o Ademar de Barros, aquele brasileiro candidato à presidência do Brasil, creio que foi opositor do Juscelino Kubitschec, era governador dum Estado, talvez S. Paulo, não sei dizer ao certo. Ora, do Ademar dizia-se “Ademar rouba, mas também deixa roubar”, tinha muitos adeptos.
Em Portugal, temos exemplos de personagens deste tipo, não vou dizer os nomes por razões óbvias, até porque não me cabe substituir a justiça, sou contra a justiça “popular”.
Mas quando me refiro a isso de políticos malhonnêtes estou-me a referir a coisas bem mais graves. Em sentido político, desonestidade tem a ver com falsas convicções, tem a ver com mentira e ocultação dos factos, falta de humildade e de sentido das suas próprias limitações, com incompetência, com arrogância e apego paranóico ao poder, a lista é bastante longa.
Pode-se abrir um concurso para desenvolver e completar esta longa lista.
No dia em que foi obrigado a dizer adeus ao poder, hoje dia 23 de Março de 2011, o “nosso” Dirty Sócrates, na forte convicção muito íntima da sua pobre arrogância, acrescentou a sua special touch ao retrato do político malhonnête: ele é uma vítima, foi atraiçoado, andou a lutar pelos interesses do país e, no fim, é obrigado a demitir-se. Queixou-se, queixou-se lendo o teleponto à sua frente para os milhões que assistiram ao seu número de circo na tv. Queixou-se contra toda a gente, só não se queixou de si próprio. Só não teve a humildade de reconhecer que ele é o principal responsável do estado, não é o único acrescente-se, a que o país chegou.
Há exemplos históricos indesmentíveis de políticos mal compreendidos no seu tempo. Políticos que a história acabou por reabilitar. A margem de erro para o nosso juízo nunca é próxima de zero e há sempre um intervalo de confiança, é como nas sondagens.
Mas para tudo há limites.
Do mesmo modo, em todas as situações, por mais desesperadas que possam ser, poderá sempre haver margem para a esperança.
Confiemos, então, esperemos que os eleitores não se vão deixar enganar mais uma vez pelo dirty Sócrates, agora reconvertido no papel de vítima inocente.
Esqueçamos o personagem.
Há coisas mais importantes para discutir, para debater.
Em vez de mais um triste e inconsequente episódio, pode ser que as próximas eleições sejam oportunidade para se sair da crise.
É que a crise já é antiga. As suas origens nasceram quando Portugal entrou para a CEE e os portugueses se embalaram nas promessas fáceis do euro do consumismo (não estou a pensar em euro-comunismo. essa é outra história).
A CEE e o euro parecem ser o nosso Dr. Fausto. Não digo isto por o Goethe ser alemão.
O tempo não perdoa e os países também se abatem. Está tudo em aberto.
O PEC IV vai para a gaveta, os senhores germânicos ficam zangados, os mercados cortam os empréstimos, o FMI entra aí com a tropa fandanga toda dos abutres da finança, acabam com as pensões de reforma, cortam mais 50% dos salários, aumentam mais 50% do passe social, do preço do pão, do leite, do leite com chocolate, põem a gente a pão e a água, fecham as poucas fábricas que ainda existem por aí não se sabe muito bem onde, confiscam as terras… Não é science fiction.
Estamos nessa borda do precipício.
Quem é que nos vai, não digo salvar, quem é que nos vai ser de alguma utilidade?
O Ricardo Salgado, o Jardim Gonçalves? O Marcelo Rebelo de Sousa, o Sousa Tavares Filho? Aqueles tipos da Sonae, do Jerónimo Martins, da Cimpor…O Cavaco, o Jaime Gama, o Miguel Relvas, o Passos Coelho, o Louçã?
O PEC IV e o Sócrates vão à vida, PSD, CDS, PC e BE vão votar contra. É o que diz a televisão e os jornais confirmam.
Lamento que todos estes partidos que agora vão votar contra o Sócrates e a patroa Merkel não tenham votado contra, todos juntos, mas há mais tempo, contra o PEC I, o PEC II e o PEC III. Afinal, é suposto que esses partidos, uns mais à direita, outros mais à esquerda, confesso que tenho cada vez mais dificuldade em distinguir o que é que verdadeiramente os distingue, esses partidos têm estado na oposição durante todos estes anos de desgraça.
Vamos lá, então, vamos imaginar, eles votam contra, mandam o PS e o seu bando de socráticos para uma inadiável e longa cura de oposição. Mas será que se vão entender quanto ao que é preciso fazer a seguir?
Continuemos a imaginar. Mandam os germânicos de volta ao ouro do Reno, entendem-se com os povos meridionais da Europa e do Mediterrâneo, entendem-se com África e com a América Latina.
Pedem sacrifícios que são de facto necessários, mas respeitam a dignidade do povo, são verdadeiros, são credíveis, pensam no interesse comum, pensam nos fracos, nos pobres, nos mais vulneráveis. Corajosos, fazem frente aos interesses dos poderosos do costume. Apostam na economia social, na solidariedade, abrem oportunidades aos jovens, valorizam o mérito e a honestidade, combatem a corrupção, põem a justiça ao serviço do bem comum, apostam na indústria, nas pescas, na agricultura, apostam no interior do país, apostam na economia, combatem a recessão e ignoram o ultimato germânico contra o espectro do deficit…
A minha mente transvia, será farsa, será Gil Vicente?
Ouvi o Presidente da República apelar, vejam bem a gravidade do acto, apelar aos jovens de hoje, jovens que do que precisam é de paz, que precisam de ter futuro e de um país com futuro, para que se empenhem em “missões e causas essenciais ao país” com a mesma coragem e “determinação” dos militares que participaram há 50 anos “na guerra do Ultramar”.
Devia haver um tribunal para julgar esta gente.
Um tribunal para julgar políticos que abusam do seu estatuto de impunidade, para julgar esta casta de gente que acha que tudo lhes é permitido, gente sem moral e sem consciência do significado colectivo das altas responsabilidades que se comprometeram a assumir.
Na escola primária, tinha um colega, também se chamava Mário. Era alto e robusto, era estimado, era calmo, vivia perto da escola, o pai era motorista. Nunca me esquecerei dele.
Fomos às sortes no mesmo ano. O Mário foi um dos primeiros a morrer lá nos confins, no norte de Angola. Morreu “determinado” por uma “causa essencial ao país“, a "guerra do Ultramar”. Desconhecia as razões de todas essas tretas criminosas, mas não houve ninguém para o salvar. Lá ficou, ceifado na sua vida aos 20 anos, como tantos outros.
Nunca perdoarei este epitáfio oficial pronunciado pelo doutor Cavaco em nome de um Estado que nunca poderá ser absolvido pela sua criminosa guerra e as várias gerações de africanos e de europeus vítimas em territórios mártires de África.
Felizmente existem muitos caminhos diferentes, há muitos anos que os homens andam por estas terras, haverá sempre muitos caminhos incertos certamente.
É certo que nunca se saberá antecipadamente quem terá a última, diria antes a penúltima das penúltimas palavras nos caminhos do que classificou como “demagogia popular”.
Corrijo, se me permite e para terminar, nunca se saberá antecipadamente o que poderá acontecer nos caminhos da democracia e da liberdade, igualdade e fraternidade.
Mais de duzentos anos depois da Grande Revolução, tudo isto continua subversivo. Longo caminho!