Naquilo a que chegou e em que tornou a política portuguesa, neste sinistro velório, todos os dias aparecem surpresas. Más surpresas. Surpresas que, mesmo para um espírito tornado céptico pelo ar dos tempos, não deixam de ser surpreendentes.
Não vou falar do Fernando Nobre, este personagem nunca conseguiu surpreender-me.
Nem me vou referir ao fait divers político do dia, o da história de se saber se o Passos e o Sócrates se falaram apenas ao telefone ou se afinal falaram de visu. Este tipo de tretas vai continuar a ocupar os distintos trabalhadores ao serviço das empresas de comunicação. Je m’en fous.
Li hoje no último parágrafo de uma pequena notícia do Público que o líder do Bloco de Esquerda Francisco Louçã decidiu revelar publicamente o seu pró-europeísmo e se manifestou contra a saída do euro, o que, na sua douta opinião, “seria uma aventura lamentável”.
Defendeu também a integração europeia, mesmo se a “Europa falhou, mas não pode continuar a falhar”. Sublinhemos: falhou, mas tem que a prender a não falhar, eis o distinto veredicto, no seu generoso voluntarismo digno de um escuteiro.
Lendo esta notícia, fiquei com a estranha sensação de que o Doutor Louçã tinha virado Jeanne d’Arc, que passou a ouvir vozes divinas, que o convenceram, que lhe anunciaram que Portugal será salvo numa Europa regenerada, por uma União Europeia democrática e social, uma União convertida aos valores internacionalistas tão caros à esquerda “de confiança”.
Obrigado, doutor Louçã, bem precisávamos dessa intervenção divina e do seu testemunho, obrigado por ter sido eleito porta-voz das divinas e tão prometedoras vozes.
Retenhamos também, para a posterioridade, que o líder do BE ficará certamente e com toda a justiça como mais um dos grandes líderes políticos que ajudaram a promover Portugal ao estatuto de país moderno e europeu.
Ficará no Panteão ao lado do Dr. Soares, esse grande político fundador da democracia pós-Estado Novo, cujo inexcedível e extraordinário mérito foi o de convidar a Europa a ficar “connosco”.
O Dr. Soares, que nos fez acreditar que, a partir do preciso momento em que entrássemos para a CEE, todos os nossos problemas de país atrasado e periférico iriam ser resolvidos, que Portugal finalmente se iria tornar um verdadeiro país não apenas europeu, mas principalmente um país rico, moderno e reconhecido de pleno direito entre os seus pares.
Tinha toda a razão o grande líder do socialismo português “metido na gaveta”, não tardou que esse reconhecimento fosse devidamente consagrado: fomos admitidos no restrito clube pleno de promessas dos países do euro, o eldorado dos tempos moderno.
Primeira questão, Doutor Louçã, a propósito de todo este psico-drama que estamos agora a viver, o da grande bancarrota, psico-drama ou tragédia não sei como apelidá-lo, em todo o caso, certamente digno de Brecht, em que o Doutor também representa um papel, como explica que, apesar de todas as promessas europeístas repetidas durante todos estes anos de Cavaco, Guterres, Barroso, Santana e Sócrates, como explica o Doutor Louçã e a sua especial esquerda de “confiança” que Portugal afinal tenha resvalado para o abismo da falência?
Segunda questão, Doutor Louçã, sabia que muitos economistas, não necessariamente de esquerda, consideram que o euro beneficiou apenas as economias mais desenvolvidas do Norte, em detrimento de todas as outras?
As razões deste facto indiscutível são conhecidas e muito me admira que não as tenha na devida conta. Por um lado, o euro ajudou a fixar a “especialização” dos países do Sul em sectores de baixas qualificações e de baixas rentabilidades.
Pelo contrário, os países do Norte aproveitaram o euro para “ocupar” os sectores mais performantes e tecnologicamente mais evoluídos. Très simple, fallait y penser.
A questão do euro não é apenas económica e, mesmo que o fosse, o económico, como o Doutor Louçã tem a obrigação de saber, é, em primeiro lugar político, e também, ou talvez por isso, ideológico. O neo-liberalismo, responsável por tantos crimes e miséria, é ou não é uma ideologia?
É sim, é uma ideologia, tanto ou mais ideologia do que a economia “socialista soviética” centralizada.
Na chamada União Europeia, com todos os seus tratados e manigâncias, a que o Doutor Louçã agora pelos vistos se converteu, chegou-se a um ponto bastante claro em que, removidos todos os preconceitos mentais e salvaguardadas as devidas diferenças históricas, políticas e culturais, a União Europeia faz pensar na defunta União Soviética.
União Europeia e União Soviética, dois grandes projectos colectivos, ambos foram engendrados por minorias misteriosamente iluminadas por grandes utopias teoricamente generosas e progressistas.
Nesta dialéctica hegeliana entre Mestre e Escravo que nos une umbilicalmente à poderosa burocracia do eixo Berlim/Bruxelas, será que podemos, será que devemos enunciar a hipótese, a alternativa de sair da UE e/ou do euro? Temos esse direito, Doutor Louçã?
Penso que temos esse direito, mesmo que não passe dum grito no deserto, mesmo que uma resposta afirmativa a esse cenário nos possa conduzir a uma “aventura lamentável”.
Será que nos concede a nós, aqueles que sempre foram ou se tornaram eurocépticos, esse direito? Ou será que, do alto da sua autoridade de líder da esquerda dita de confiança nos vai denunciar e remeter para uma espécie de index de perigosos e irresponsáveis anti-patriotas europeus?
Digo-lhe o mesmo que diria a outros líderes e políticos. Faça um esforço, ouça outras vozes, as que andam por aí, não ouça apenas as que vêm do além.
Tenha a coragem de admitir outras alternativas, outras hipóteses de trabalho político.
Seja um político “marxista” no verdadeiro sentido etimológico da palavra. Sendo a Política uma arte da relação de forças, por que razão não se ouve em Portugal uma única voz, de direita ou de esquerda, são todos iguais, uma voz que ponha em causa a vaca sagrada chamada união europeia com todos os seus empregos e benfeitorias políticas.
Haverá por aí algum político capaz de dar um murro na mesa da comissão europeia dos burocratas, alguém que grite fuck the european union!
Enquanto em Portugal dominarem os políticos acomodatícios, os que estão sempre prontos a aceitar as situações, estaremos sempre destinados a embarcar na carroça que nos conduz à forca. É nesse veículo que nos encontramos agora.
Não é o Doutor Louçã o responsável disso, claro. É apenas uma decepção, mais uma. Surpreende-me, no entanto, a sua repentina solidariedade para com a classe dos europeístas fechados e surdos às vozes do povo.
Uma classe para quem a UE e o euro são entidades incontestáveis e eternas.
Uma classe política aparentemente condicionada por imperativos corporativos que, nem por segundos, admite a hipótese, o cenário de Portugal recuperar a sua liberdade e sair da união europeia e do euro.
Incapazes sequer de considerar essa hipótese como uma hipótese de trabalho, que é necessário considerar, equacionar e discutir, aprofundar.
É óbvio, tem razão Doutor Louçã, que que se tal hipótese se viesse a concretizar se trataria de uma mudança cheia de consequências.
Qual é, então, a alternativa? Devemos continuar a ficar caladinhos, à espera que os senhores de Bruxelas e os seus patrões tomem decisões por nós?
Será que não se pode esperar mais de uma esquerda de confiança?
Será que não compete a essa tal esquerda, nesta situação em que o país está completamente de rastos e em que vai ficar cada vez pior, será que não lhe compete sem quaisquer complexos disto ou daquilo, estar atentos às realidades, interrogar o futuro e colocar em cima da mesa todos os cenários?
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