Durante a semana e por vezes também aos domingos, há cidades onde há mercados de portas abertas.
No universo urbano em que vivemos, além dos mercados, existem ainda alguns espaços públicos que escapam à ditadura centro-comercial da grande distribuição, espaços e actividades livres dessa ditadura big brother com pipocas.
Hoje, já não se vai ao cinema, vai-se ao centro comercial e, depois, sabe-se lá, talvez haja algum filme para ver…
Felizmente, temos teatros onde muita gente se dedica a essa nobre arte, felizmente, ainda temos alguns mercados. E, por vezes, os mercados parecem-se muito com os teatros. Mas teatro é teatro, mercado é mercado, não confundir as cenas.
Quando falo de mercados, não me estou a referir obviamente aos hiper ”mercados”, falo de sítios públicos com portas abertas para a rua por onde se pode entrar directamente até às bancas das vendedeiras, dos vendedores, cebolas, batatas, peixe, carne, queijos, figos secos, flores, piri-piri, queijos frescos, o sal da vida, eis a vida dos mercados. Lugares que não têm caixas registadoras.
Este domingo, fui então ao mercado. Não sou de hipers, causam-me tonturas com o seu ambiente sonoro de música de elevador.
À mesma hora deste domingo, estou certo que muito mais pessoas preferiram os hipers mais próximos.
Outros, porque era domingo e por razões que são de cada um e que eu muito respeito, estavam a rezar em alguma igreja.
Mas, como estava bastante calor e que o Verão se perfila, provavelmente a maior parte dos dominicantes estaria a ver o mar, mais ou menos despidos à disposição do sol e dos olhares alheios.
Felizmente em Portugal não nos falta oceano, não nos falta sol, temos sol e bom tempo na maior parte dos 365 dias do ano, não nos podemos queixar muito da natureza. Falta-nos dinheiro, falta-nos emprego, não temos bons políticos. Queixemo-nos, antes, dos homens e de nós próprios.
Aproveitei então este domingo agradável e ensolarado para ir ao mercado, tinha umas compras em vista, além do mais, gosto do ambiente propriamente dito. É um dos últimos sítios onde as pessoas se encontram.
À entrada do mercado havia algum aparato, uma ambulância e um carro da emergência médica, com as lanternas acesas com aqueles sinais azuis que se acendem e se apagam. Presumi que devia haver algum problema.
Entrei, mas estava tudo calmo, o movimento era natural, os clientes avaliavam a mercadoria, os vendedores atendiam os clientes. Lá comprei um peixinho, mais uns legumes e uma fruta, nada de mais.
Continuei no meu périplo, talvez um queijito, talvez um pão e lá fui observando o movimento. Havia muita gente, mas sem atropelos, tudo muito calmo.
Virei à direita, deparei com um polícia, alto lá, o homem não disse nada, apenas estava ali no meio do corredor, vi a farda, percebi que não podia continuar a andar naquela direcção, havia ali um espaço vazio onde não passava ninguém. Vi também que, do outro lado, estava outra farda, era uma agente da polícia.
Pensei, há dois polícias e entre os dois está um espaço onde ninguém passa. Se ninguém passa, isto num mercado público onde toda a gente anda de um lado para o outro, é porque ali naquele sítio não se pode passar. E, se não se pode passar, é porque ali se passou alguma coisa.
Em geral, este tipo de deduções muito rápidas costuma acontecer quando alguma coisa de grave está a acontecer ou aconteceu à nossa volta.
Olhei para o meio do espaço vazio e no meio desse chão vazio vi que estava um plástico verde estendido. Olhei melhor e percebi que, pelo volume do volume, por debaixo da cobertura em plástico tinha que estar alguém. Alguém que estava coberto pelo dito plástico.
À volta, o mercado continuava a funcionar, transacções, clientes, vendedores, aparentemente nada afectava o mercado. Estava ali uma vendedora naquele sítio da minha perplexidade, perguntei, sim, foi um senhor, sentiu-se mal, caiu para o lado.
Era mudo, falava por gestos, costumava vir aqui, o senhor morreu. Quando é que isso aconteceu, ora, tudo aconteceu prá ai há uma hora. E então, não foi socorrido? Foi, mas já era tarde demais.
Então, por que é que o corpo ainda está ali, mas porquê? Estão à espera do delegado de saúde. Sabe, hoje é domingo.
Desisti do queijito e do pão.
Pensei, domingo é um dia complicado para morrer em sítio público.
Melhor do que morrer em sítio público a um domingo, talvez seja melhor morrer sozinho em casa.
É que, na hipótese de isso poder acontecer, o dia da semana se calhar é completamente indiferente.
Passados dias, anos ou meses, haverá sempre alguém a descobrir que ali naquele sítio, que foi um espaço de vida muito privado, num dia da semana que não interessa para o acaso, alguém morreu sozinho. Alguém que na intimidade do seu lugar de vida, viveu os seus últimos instantes sem um último olhar de outro alguém.
Alguém cuja vida, porém, não acabou coberta por um plástico verde a servir de cobertor, guardado pela polícia e no meio de pessoas anónimas ocupadas pelas compras para o almoço de domingo.
Não me restou mais nada para pensar neste domingo ensolarado. Apenas a nostalgia de não ter conhecido aquele senhor que se expressava por gestos.
Altura para gestos, que fazer? Na minha mente fica a imagem do plástico estendido naquele lugar público cheio de gente nas suas ocupações de uma manhã de domingo. Mais uma manhã.
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