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terça-feira, 5 de maio de 2009

QUARENTENAS

No Nosferatu de Murnau, quando o grande barco termina a sua viagem no porto, as imagens finais do filme mostram o desfile em passo de corrida de ratos lestos e atrevidos que fazem a guarda de honra ao personagem de grandes orelhas, no seu desembarque. É o desenlace da viagem de todas as ameaças, o vampiro com os ratos, a chegada da peste. As epidemias sempre gostaram de viajar. Quem não gosta?
A mais terrível de todas as pestes e epidemias, a peste negra, terá começado o seu périplo na China, isto no séc. XIV, quando entre Ocidente e Oriente poucas linhas de comunicação existiam, não havia aviões, provavelmente só camelos, cavalos, guerreiros e a rota da seda. E no final do maléfico trajecto, o barco dos ratos e da peste chegou a bom porto, salvo seja, com Nosferatu feliz. E ela chegou ao Ocidente, a maldita bubónica, e por cá ficou durante 3 anos, entre 1347 e 1350.
Não havia anti-vírus, a desgraça tinha o caminho livre. Mas, no princípio do séc. XVI, burgueses esclarecidos e preocupados com a sua sobrevivência inventaram em Londres os bills of mortality, registos semanais dos óbitos. Quando a coisa observada subia demasiado, as famílias aisées punham-se ao fresco para as suas casas de campo, e assim escapavam à epidemia. Eram espertos, inventivos e a sua (deles) invenção conduziu mais tarde às quarentenas, com que se isolavam nos portos de destino os viajantes contaminados. Em Lisboa, à entrada do Tejo, era o Lazareto, ainda lá estão as ruínas, suponho.
No séc. XVIII, as quarentenas tiveram bastante sucesso e impediram que muitas ameaças nosferáticas se propagassem. No entanto, em Marselha em 1720, um controle médico ineficaz de um barco chegado da Síria, carregado com muita gente contagiada, provocou uma terrível mortandade, pelo menos metade dos 80.000 habitantes da cidade foram ceifados e, a partir dali, a peste viajou para norte. Foi a última grande epidemia de peste da Europa ocidental.
Depois, vieram outras epidemias talvez menos terríveis, até à gripe espanhola, que nos atingiu com violência. Balanço: entre 1918 e 1919, em Portugal, houve mais 135.000 óbitos (se quiserem saber mais, leiam o livro que vai ser publicado pelo Instituto de Ciências Sociais, Olhares sobre a pneumónica).
Em 1918, tal como em Marselha em 1720, a quarentena falhou, e os resultados dessa falha claro que foram catastróficos. Falhou, porquê?
Aconteceu tudo no final da guerra, as tropas estavam a ser desmobilizadas, elas queriam era regressar a casa, muitos soldados tinham apanhado um vírus de aves viajantes, pouco controle havia, só mais tarde é que se percebeu o que estava a acontecer, os sistemas sanitários eram rudimentares e a miséria não tinha mudado. As primeiras vítimas aconteceram em Espanha, logo, gripe espanhola, o que faz sentido. Creio que os espanhóis não se ofenderam, já bastava a desgraça.
Não havendo quarentena, a pneumónica viajou pelos continentes.
Viajará a porcina influenza, agora rebaptizada gripe A (A, de quê?) pela extraordinária Organização Mundial de Saúde?
Esta organização global tem exercido o seu poder em campanhas moralistas, tipo anti-tabagismo, anti-alcoolismo e vamos lá a ser saudáveis, senão…Na sexta-feira da semana passada, os seus principais responsáveis começaram de repente, quando ninguém estava à espera, a falar em tom solene de pandemia de uma nova gripe, a gripe porcina, de que ninguém tinha ouvido falar. Pânico, grau 3, grau 4, grau 5 e, sabe-se lá, grau 6, máximo de todas as ameaças. Histeria: 148 mortos no México, o que é que vai acontecer? Vai ser decretada uma quarentena ao México, aos Estados Unidos, à Califórnia? Niente.
O pessoal turístico continuou a ir para Cancun, se a epidemia é de porcos, lá não há perigo, é tudo muito higiénico.
O tráfico intercontinental não foi interrompido, a OMS foi avançando, foi recuando, afinal, a tal pandemia é melhor não falar nisso, se calhar, só lá para Outubro, que é mês da gripe espanhola e da asiática de 1957.
Quarentenas, pandemias, desgraças: e as subprimes? Se não nos livraram da epidemia das subprimes e do desemprego será que nos vão livrar da epidemia mexicana?
A burguesia e os burgueses, quando ainda não estavam comodamente instalados no poder, inventaram as quarentenas sanitárias, que evitaram muitos milhares de mortos. Honra lhes seja. Será que ainda poderemos confiar que vão ser capazes de controlar a maléfica influenza? E já agora de sacrificar a sua ganância de cada vez mais lucros? De inventar outro sistema económico e social, pós-capitalista?

1 comentário:

Anónimo disse...

O mais greve, meu caro, é que a burguesia já inventou a pós capitalismo, exactamente através da quarentena em que colocaram a maioria da população mundial, sem possibilidade de acesso ao bem estar que a capacidade de produtividade da Humanidade deveria estar a proporcionar-lhe. Essa gente, só de quarentena aprenderá que não existem apenas eles no Mundo