Saúdo os comentários de Nuno Cardoso da Silva e de João Pedro Freire à proposta de linhas programáticas para uma candidatura de esquerda às presidenciais que apresentei.
A discutir é que a gente se entende, e hoje, mais do que nunca, discutir é preciso.
Há uma certa convergência entre os dois comentários não apenas pelas opiniões, mas principalmente pelos temas e, por isso, permito-me responder-lhes em conjunto de uma maneira sintética dentro do possível. Os pormenores ficarão para mais tarde.
Há aqui duas questões estreitamente ligadas: a do euro e a da soberania.
Comecemos pela segunda.
Concordo que o conceito de soberania pode ter más conotações.
Por um lado, a soberania dum Estado tende sempre a ser condicionada e, por isso, ela é relativizável porque a independência dum país pode ser mais ou menos dependente de interesses e de poderes terceiros. Pode também acontecer que ela seja apenas a expressão de nacionalismos serôdios e exacerbados. Foi o que aconteceu na Europa entre as duas guerras. Em Portugal, o Estado Novo era um estado soberano e o seu nacionalismo exacerbado e beato servia apenas para legitimar a ditadura. Era um Estado anti-social e anti-democrático que não tolerava as liberdades individuais.
Na mesma época, outros estados soberanos assumiam os valores da democracia, eram sociais e as liberdades individuais estavam plenamente consagradas. Constituíam o exemplo paradigmático da relação que legitimamente se pode estabelecer entre soberania, liberdades e democracia.
Poderá esse paradigma ideal aplicar-se ao actual Estado português?
Penso que esse modelo deixou de fazer sentido entre nós.
O que está a acontecer ou já aconteceu – as coisas mudam depressa demais lá nos segredos dos bastidores dos mandões da EU – é um golpe de estado, cujas consequências me parecem óbvias: se os órgãos de soberania democraticamente eleitos em Portugal deixaram de ter competência para aprovar o orçamento e votar impostos, isso significa o quê? Significa que a soberania desses órgãos passou a ser de fachada e que Portugal já não é um país soberano.
Será esta conclusão uma ilação nacionalista, estilo Estado Novo? Não, porque o que sobreleva aqui em relação ao conceito de soberania é a perda das liberdades e da democracia políticas.
Se Portugal já não é um país soberano, o que é que isso quer dizer? Quer dizer que a democracia portuguesa passou a ser uma democracia de fachada, que já não mandamos em nossa causa.
Síntese: se não gostamos da palavra soberania, então falemos de liberdade e de democracia.
Chegamos, então, ao ponto: soberania democrática/EU/euro/PEC/austeridade são questões indissociáveis, temos que nos pronunciar sobre elas todas e não apenas sobre esta ou aquela.
Falemos da União Europeia. Será exagerado compará-la com a defunta União Soviética?
Ambas foram constituídas de cima para baixo. Haverá algum português que se possa gabar de ter tido a oportunidade de se pronunciar, de ter votado em relação à entrada de Portugal na CEE, de ter votado a entrada no euro, de ter votado o Tratado de Lisboa? O que foi feito das promessas?
Do mesmo modo que não existia uma URSS aceite por todos os povos que nela estavam integrados à força sob a mão férrea do partido comunista soviético e da sua nomenklatura, também não existe uma União Europeia decidida e construída livremente pelos povos europeus.
Queremos os Estados Unidos Socialistas da Europa de que fala o João Pedro Freire? Generosa ideia. Não rejeitemos as utopias, mas sejamos humildes e realistas. Desconfiemos dos burocratas que odeiam a democracia.
Eles construíram a União Soviética. Outros parecidos com eles mandam na EU, ou seja, mandam em nós e ninguém diz nada.
Porquê? Porque o que está agora na moda é dizer que isso do Estado-Nação passou a ideia arqueológica. E dizem-nos isso a nós, o mais antigo Estado-Nação da Europa?
Sair do euro é um disparate, diz o Nuno Cardoso da Silva. E entrar, não foi?
Há diferentes opiniões.
O economista francês Elie Cohen, por exemplo, afirma que o euro beneficiou sobretudo as economias mais desenvolvidas do Norte. E a razão compreende-se facilmente: por um lado, o euro ajudou a fixar a “especialização” dos países do Sul em sectores de baixas qualificações e de baixas rentabilidades; pelo contrário, com o euro, os países do Norte aproveitaram para “ocupar” os sectores mais performantes e tecnologicamente mais evoluídos.
Quando rebentou a bolha do imobiliário e da construção civil, o que é que aconteceu à Espanha e a Portugal? A Espanha, que era o tigre ibérico, está à beira do abismo. Portugal? Portugal depende da Espanha. Ganhámos assim tanto com o euro?
A questão do euro não é apenas económica e, mesmo que o fosse, o económico é, em primeiro lugar político, e também, ou talvez por isso, ideológico. O Neo-liberalismo, responsável por tantos crimes e miséria, não é uma ideologia?
É tanto ou mais ideologia do que a economia “socialista soviética” centralizada.
É a economia uma ciência absolutamente exacta? Não, não é.
É verdade que, entre as causas da falta de produtividade da economia portuguesa, estão a “falta de qualificação dos empresários, a falta de qualificação de muitos quadros médios e superiores e a falta de investimento por parte das empresas, que preferem distribuir dividendos” - estou a citar o Nuno Cardoso da Silva. Mas quem é que tem protegido e promovido essa gente? E a corrupção não tem nada a ver com isso?
Então, o que é que fazemos?
Espero que sejamos cada vez mais críticos, que mantenhamos o nosso espírito alerta, que confiemos na razão e no raciocínio, e que sejamos prudentes e realistas.
Falei de sair da EU e/ou do euro, é verdade, mas trata-se apenas de uma hipótese de trabalho, hipótese que se me afigura necessária face ao imbróglio para que fomos arrastados pelos responsáveis conhecidos de toda a gente. Trata-se de um cenário que é preciso equacionar e discutir, aprofundar.
É óbvio que se tal hipótese se viesse, se vier a concretizar-se, se trataria, se tratará de uma mudança cheia de consequências.
Mas significa isso que devemos ficar caladinhos, à espera que os senhores de Bruxelas e os seus patrões tomem decisões por nós? Será que não nos compete, enquanto militantes de esquerda sem complexos, atentos às realidades e virados para o futuro, colocar em cima da mesa todos os cenários?
Porque o que está em causa aqui em tudo o que tem a ver com a mais que problemática relação que Portugal tem com a União Europeia, é decidirmos se vamos ter coragem e lucidez, se seremos capazes de apostar em nos governarmos a nós próprios ou se, pelo contrário, vamos continuar a fazer gala em querermos ser bons discípulos e obedientes às ordens desses tipos que nos governam a partir de Bruxelas. Tipos que, por que não foram eleitos por ninguém, não passam duns ditadorzecos.
Vamos tratar da nossa vida?
Vamos, por exemplo, encontrar novos parceiros internacionais? O que é que nos impede? A fidelidade a uma Europa que sempre nos olhou por cima do ombro? Há outros parceiros à nossa espera, temos é que os procurar.
Magrebe, África Subsaariana, América Latina. Foi por aí que nós andámos desde há muitos anos, quando éramos já uma espécie de párias, plantados aqui no extremo ocidental esquecido da Europa. Um extremo europeu periférico, sem rotas de comércio, estávamos condenados, como hoje. Mas descobrimos novos mundos, se calhar é essa a nossa sina.
E mandemos o Sócrates e o Cavaco para o espaço a bordo duma Soyuz. Declaro-me desde já contribuinte voluntário numa subscrição com esse propósito. Boa viagem.
(*)Escrevi este texto para Tribuna Socialista
1 comentário:
Caro Mário Bandeira,
Obrigado pela resposta. É, de facto, necessário discutirem-se estes temas.
Creio que todos queremos mais bem-estar, mais justiça, mais liberdade, mais democracia, mais respeito pelos direitos humanos. Nada disto - e sobretudo se visto em conjunto - já é possível de
realizar à escala estritamente nacional. Poderíamos fazê-lo num contexto íbero-afro-americano? Talvez, mas o facto é que esse quadro de países de línguas castelhana e portuguesa (ainda) não existe, e a Europa vai a caminho de existir, e por isso não temos muito por onde escolher.
É bom que a Europa se faça de cima para baixo? Obviamente que não, mas o facto é que, como cidadãos, não temos sabido organizar-nos para que a nossa vontade seja respeitada. A esquerda mais radical decidiu a priori que a Europa não interessa, e deixou aos partidos burgueses o monopólio da construção europeia, obviamente em obediência ao modelo neo-liberal mais destrutivo.
Temos todas as razões para desejar uma Europa unida, o que talvez não queiramos é fazê-lo no quadro desse modelo neo-liberal. Mas, se assim é, assumamos a iniciativa de propor o nosso modelo. Porque uma Europa dividida é uma Europa vulnerável às aventuras imperialistas americanas, uma Europa dependente, uma Europa comandada por interesses oligárquicos. Para preservar a nossa adesão de princípio aos direitos humanos temos de ser fortes, e para ser fortes precisamos de nos unir. O Tratado de Lisboa é mau? É. Mas pode ser utilizável até que o possamos alterar. Nele está consagrado um princípio fundamental, o da subsidiariedade, que, a ser levado a sério, preservaria o controlo por parte de cada comunidade nacional de muito que interessa à nossa vida do dia a dia. A soberania plena já não é preservável num quadro estritamente nacional, mas mesmo a componente que terá de ser alienada para a Europa não tem de deixar de ser gerida de forma democrática. É isso que temos de exigir. Mas virar as costas à Europa porque ela não traduz ainda os nossos ideais seria a melhor maneira de garantir que esses ideais nunca venceriam. A Europa tem de ser conquistada por dentro, e é isso que nos deveria ocupar.
Nuno Cardoso da Silva
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